Não, a senhora F. não quer saber de nenhum plano que lhe garanta mais megas de internet, pois acha que o mundo não precisa de mais informações ou velocidade e, quando leu uma matéria sobre joy of missing out, a tendência da desconexão que estimula o contato pessoal, já adotada por vários segmentos empresariais, ficou bastante convencida da necessidade dessa mudança, mesmo achando que o celular é a única solução nessa época de isolamento, pois as cartas, se enviadas, demorariam muito e a ansiedade viraria um Everest. Ou melhor, dez Everests. E, sério, quem mantém longos diálogos por telefone fixo, quando é tão mais fácil mandar uma mensagem ou fazer uma chamada de vídeo?!
Mais: a matéria ainda dizia que as experiências analógicas distantes das mídias sociais trazem uma acalentadora sensação de propriedade, embora ela mesma só consiga experimentar uma distante sensação de propriedade em relação ao seu cão, que ela sempre cumprimenta com uma série de palavras aleatórias como flip/flop/smurf/sweet dog/blend/citizen, enquanto constata acho que eu preciso beber alguma coisa, embora esta frase, nos filmes e livros, seja sempre uma reação a alguma notícia inesperada ou desagradável, o que não ocorre no caso, configurando apenas uma tênue tentativa de colocar ideias e propósitos em seus devidos lugares.
Aliás, ela tem questionado o desaparecimento quase definitivo dos devidos lugares e, em conversa com a positiva senhora L., ambas concluíram que as meias e as tampas dos potes plásticos, mesmo possuindo lugares próprios para serem colocadas, acabam sempre por perder seus pares, provavelmente sugados por um imponderável buraco negro, num mistério que nem o comissário Maigret conseguiria elucidar.
A senhora Z. afirma à senhora F. que algumas coisas nunca devem ser ditas em uma conversa, como: seus planos, sua vida sentimental ou quanto recebeu por determinado trabalho. A senhora Z. é prática, cosmopolita e lucidíssima, então a senhora F. fica em dúvida, mesmo achando que, abolidos esses assuntos, quase todo o resto se resume a assuntos meio alheios, o que não deixa de ser uma atitude bem prática mesmo.
A senhora F. colocou um São Francisco numa peanha ao lado da porta de entrada, mas nunca hesita em esmagar um pernilongo contra a parede, enquanto murmura: Bandido!, e sempre se justifica com o pensamento de que nunca leu nada, em lugar algum, sobre o fato de o santo proteger também os pernilongos, embora acredite que a barata goze de alguma proteção especial, depois de alçada pela Clarice Lispector a objeto de investigação psicológica.
A senhora N. vem enfrentando situações familiares bem graves, mas consegue manter a calma, tomar sol quando possível, fazer longas caminhadas e (quase sempre) encerrar as conversas com um animador e profilático e vamos que vamos, o que costuma provocar uma certa inveja na senhora F., que tem sentido dores suspeitas e teme uma nova úlcera, além de ser perseguida pelo pensamento sombrio de que sua mãe acabará por matá-la, embora obviamente sua mãe não tenha a menor de intenção de fazer isso, de modo algum.
A senhora S. acha que o lugar ideal deve ser o céu, para os que acreditam nele, mas ela prefere ficar por aqui mesmo. A senhora S. costuma fazer tortas de limão madrugada adentro e outro dia propôs um encontro acompanhado de livros de colorir e lápis de cor, o que, no atual cenário, pareceu à senhora F. uma enorme transgressão. Aliás, ela nem sabe se conseguiria se concentrar o suficiente para colorir coisa alguma, pois sua cabeça parece estar totalmente vazia, embora paradoxalmente superlotada pelos mais diversos pensamentos, sentimentos, objeções e considerações.
A senhora F., muitas vezes, pensa no filme Queridas Amigas, de István Szabó, a que assistiu numa tarde fria, enquanto os filhos dormiam. Ela não se lembra de detalhes do filme, mas recorda que mudanças sociais colocavam as duas amigas em situações muito, muito ruins e sua (delas) amizade era colocada em xeque. A senhora F. tem amigas queridas e sempre acha que suas qualidades são, mais que inquestionáveis, desejáveis e indispensáveis. A referida senhora acha, aliás, que alguns piores defeitos podem ser grandes qualidades, ou vice-versa, dependendo da situação, do espírito do momento, do sol ou da chuva. Então até mesmo Queridas Amigas poderia ter sido menos perturbador se assistido uns 20 anos mais tarde, numa tarde quente e vazia de domingo.
Ela costuma passar algumas mensagens curtas às amigas mais próximas e, ainda que gaste muitos minutos tomando o café da manhã, divagando ou lendo, reserva seus telefonemas mais coloquiais para a hora de lavar a louça, pois assim pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo, entortando a cabeça para segurar o telefone fixo e mantendo as mãos livres, o que sempre lhe provoca uma satisfatória sensação de eficiência.
A senhora F. tem uma tendência de achar que todas, mas todas as pessoas mesmo, são ou foram bonitas algum dia, embora pense frequentemente na liberdade de ser, a cada dia, mais invisível, e achou graça, no Ano Novo, quando a viúva do primo respondeu sim, quando ele tinha 12 anos, em resposta ao seu comentário ele deve ter sido um homem bonito algum dia, na vida. A senhora F. também teme estar se iludindo em relação a seus gostos, pois as mudanças são velozes e inevitáveis, e ela já está vendo o dia em que vai passar a gostar de cinza, bege, filme de terror e comida japonesa.
Ela nem mesmo sabe se realmente ainda vale a máxima nunca diga dessa água não beberei, pois se nunca é a mesma água nem o mesmo rio, então… também tem lhe ocorrido que o aforismo penso, logo existo, proferido por Santo Agostinho, deveria ser substituído pela constatação indubitável tenho problemas, logo existo. Ainda mais nessa época em que…
E embora sua cabeça vazia não seja (e nem pretenda ser) oficina do diabo (talvez só um diabinho, um filhote, um embrião de diabo, melhor dizendo), hoje, cortando a cidade em seu carro empoeirado, ela experimentou uma relativa tranquilidade trazida pela música do rádio, o ruído do ar-condicionado, a visão dos carros enfileirados e a caixa vermelha do I Food, com a frase motivadora Hummm, viver é uma delícia (é, muitas vezes é, mas nem sempre), concluindo, afinal, que tudo estava como sempre, em seus indevidos lugares.