Vamos falar do JB por meio de um tijolo de 564 páginas fabricado por Cezar Motta que promete esgotar o assunto a partir do título: Até a Última Página – Uma História do Jornal do Brasil. Opa, pensei, vai falar também da minha vida, do meu trabalho. Pretensão. Trabalhei no JB desde o final dos anos 60 até o final dos anos 80, com direito a demissões e readmissões pelo meio, e em 1988 me mudei para Goiânia. Como dizia mestre Aloysio Biondi, “faltou dizer”, título de uma de suas célebres colunas, mantidas no Diário da Manhã, quando ele também se mudou para Goiânia. O incrível século passado.
Ana Maria Machado, hoje imortal da Academia, e antes colega de redação, fez o prefácio. Concordo com ela. “Este é um livro de jornalista. Talvez por isso se leia com tanto gosto. Como uma grande reportagem.” Uma “preciosa fonte para futuros historiadores [um salto de qualidade, do jornalismo à história], ao examinar bastidores da relação entre imprensa e poder, sobretudo ao longo do século XX no Brasil.” Na contracapa, um bom resumo de como foi que Motta produziu uma “extensa pesquisa documental para reconstituir a trajetória do JB desde a sua fundação, em abril de 1891, até o seu fim com veículo impresso, em 2010. O resultado é um livro fascinante, que aborda as relações do jornal com os governos civis e militares até o dia a dia da redação.” É lembrado o protagonismo de Alberto Dines, Elio Gaspari, Millôr Fernandes, Zózimo, Carlos Castello Branco, Amilcar de Castro, Carlos Lemos, Wilson Figueiredo, Janio de Freitas, “entre muitos outros”. Muitas histórias saborosas, outras nem tanto. Algumas delas:
– Já na segunda metade dos anos 1980, por exemplo, Gaspari, então na Veja, e Delfim Netto entraram juntos em um elevador de um edifício em São Paulo. Com eles, uma senhora que, imediatamente, reconheceu Delfim. Sufocada pela inflação e pela crise do governo Sarney, ela elogiou o ex-ministro: – Ah, doutor Delfim, que saudades do seu tempo de ministro. Tivemos o milagre econômico, e até no governo Figueiredo o senhor foi bem. A gente tinha mais confiança no governo.
Enquanto Delfim sorria, placidamente envaidecido, Elio Gaspari atacou: – A senhora deve ter enlouquecido! Este homem quase destruiu o país, ele foi um verdadeiro desastre!
A velhinha abriu a boca, sinceramente chocada com o que ouvia. Delfim, dotado do mesmo tipo ácido de humor, limitou-se a dar sua típica gargalhada de boca fechada, que virou uma marca registrada, sacudindo os ombros com uma expressão cínica e debochada no rosto.
Outra história: – Milton Nascimento, em seu apogeu artístico, já com os dois discos Clube da Esquina, chegou no meio da tarde para gravar entrevista com José Carlos Saroldi para o programa Noturno, que ia ao ar pela Rádio JB às terças-feiras às onze da noite. Foi tratado com frieza profissional: “O senhor deseja falar com quem?”. Com um ar sonolento, Milton respondeu: “Com o José Carlos Saroldi, na rádio. É uma entrevista.” Uma das moças esticou o pescoço sobre a mesa e olhou Milton dos pés à cabeça: boné, camiseta regata, calças bem largas com bainha desfiada e chinelos. “Infelizmente, o senhor não vai poder subir vestido assim.” Paciente, Bituca ainda pediu: “Ligue aí pro Saroldi e avise a ele que estou aqui, por favor.” A ligação foi feita, e só a muito custo, depois de acionados o chefe da segurança e o administrador do prédio Letício Câmara, foi autorizado o acesso de Milton aos estúdios da rádio, no sétimo andar.
A pesquisa de Cezar Motta levou-o até os anos 60 quando Gaspari fazia o curso de História na Faculdade Nacional de Filosofia e teve sua formação brutalmente cerceada pelo diretor Eremildo Viana.
– Em meio à agitação política brasileira que marcou o período entre a renúncia de Jânio Quadros e a queda de João Goulart, o (então) adolescente Elio Gaspari empolgou-se com os comícios e o noticiário dos jornais e acabou filiado ao Partido Comunista Brasileiro. Foi estudar História na Faculdade Nacional de Filosofia, de onde foi expulso pelo diretor da faculdade, Eremildo Viana, um conhecido ultraconservador, por agitação política. Chegou a trocar bofetões com colegas que eram adversários políticos. Aliás, foi inspirado no diretor que Elio Gaspari criou o personagem “Eremildo, o Idiota”, com que ilustra suas colunas dominicais publicadas em vários jornais, entre eles O Globo e a Folha de S. Paulo. Alguns anos depois, o então reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pedro Calmon, ofereceu-lhe um diploma honorário ou uma anistia, o que ele quisesse. Elio recusou, dizendo que seu diploma era o comunicado de expulsão, emoldurado em sua casa.
– Nascimento Brito (o dono do jornal) não gostava de Zuenir Ventura, com quem tinha contatos esporádicos sempre que ele era o encarregado de fechar a primeira página, uma vez por mês. Brito achava Zuenir descuidado com a própria aparência, sempre de calça jeans e tênis, camisas surradas, sem jamais usar terno e gravata. Comentava que “era um velho que se veste como um adolescente desleixado”. Não gostava também da postura e das opiniões libertárias de Zuenir expressas em artigos e reportagens. “É metido a jovem e meio comunista”, comentava.
– Certa vez, ao fechar a primeira página, Zuenir deu destaque a uma foto em que Gilberto Gil e Caetano Veloso se beijavam na boca. Brito ficou furioso, queixou-se duramente a Marcos Sá Corrêa (editor), disse-lhe que o JB era um jornal de família, católico, e não podia fazer a apologia do homossexualismo. Como sempre, Marcos soube contornar a ira do patrão. Mesmo incomodado com Zuenir, Brito nunca pediu a demissão dele.
JB, um mar de histórias. Como a que envolveu Clarice Lispector. Lá pelos anos 60, Alberto Dines, um dos responsáveis pela mudança gráfica do JB inspirada no The New York Times, e que deu ao jornal um prestígio pela modernidade, foi demitido pelo dr. Brito. Logo depois, Otto Lara Resende, então um dos diretores do jornal, solidário a Dines e decepcionado com Nascimento Brito, pediu demissão.
– Clarice Lispector, que havia sido convidada por Dines, a pedido de Otto, para escrever para o Caderno B suas crônicas e poemas, um trabalho semelhante ao que fazia na revista Senhor, foi demitida por telegrama. A ordem veio de Nascimento Brito, embora todos no jornal considerassem “um luxo” ter como colunista uma das escritoras mais admiradas e queridas do país. Brito não gostava de Clarice Lispector nem dos textos que ela produzia semanalmente. Achava tudo pernóstico, tedioso e vazio.
Ah, o JB, sonho de todo jornalista, ainda mais quando você tem seus 20 anos. Redação da internacional, ventos de maio de 68, Yúri Gagárin no Galeão, homem na Lua, como traduzir o intraduzível em poucas horas, módulos lunares, alunissagem, nave-mãe. Guerra dos Seis Dias, Dines de uniforme do exército israelense (depois ele ficou do lado dos palestinos). Operação Brother Sam, a participação dos EUA no golpe militar de 64, o desmascaramento da farsa militar no atentado do Rio-Centro. E a experiência da redação, o convívio com pessoas de toda espécie. Heterogeneidade, diferença, lugar favorito do inesperado, quando almoçar com James Stewart é apenas um acidente de percurso na carreira de um crítico de cinema. Exercer a crítica de cinema, assim, como se fosse do nada. Exercitar a crítica de cinema com pegada psicanalítica.
Lugar democrático e ao mesmo tempo megalômano, empafiado, brigas de foice com o poder, e seus aliciamentos, disputa a faca no escuro entre os mandarins da imprensa, doutor Nascimento Brito e doutor Roberto Marinho, os doutores quase se matando, espionagem industrial, favoritismos desavergonhados com dinheiro público do Banco do Brasil, do BNDES, perdão de dívidas, empréstimos com jurinhos a pagar a perder de vista, e mesmo assim a grande incompetência na gestão financeira, empréstimos e dívidas em dólar, e o jornal afundando, e onde serão cortadas as despesas? Na redação, o temível “passaralho”. Fora as cabeças cortadas a pedido da ditadura e seus aliados, depois dos dribles, dos bailes que os censores militares ou não levavam a cada dia dos anos de chumbo.
Na briga com dr. Roberto, dr. Brito levou a pior. O JB afundou-se nas dívidas para ter uma televisão. Não conseguiu. Gastou rios de dinheiro na inepta administração da sede nova na Avenida Brasil: nove andares para fazer apenas um jornal. Foi sumindo, sumindo, sumiu.
Antes de afundar, meninos, eu vi. Comecei na sede antiga, na Avenida Rio Branco. Da sacada fazíamos a cobertura das passeatas que mudaram nossos destinos. Não vi, mas me disseram que o Che passou pelas oficinas para visitar os gráficos. No mesmo andar, na redação, ficava o Departamento de Pesquisa, de onde Gabeira tramou o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. No mesmo andar, o copidesque, alguns craques da língua moldavam o lead: em cinco linhas, dar conta de “ O quê? , Quem? Onde? Quando? Como? E por quê?. Gente do quilate de Ferreira Gullar, Nelson Pereira dos Santos, Lago Burnet, Janio de Freitas, Armando Nogueira, José Ramos Tinhorão, Tite de Lemos, Cipião Martins Pereira. Torção na língua, os repórteres escreviam mal. Torção levada aos extremos da pura e delirante objetividade, do paroxismo da suposta neutralidade. A tal ponto que, no Globo, Nelson Rodrigues deitava e rolava, debochando do jornal do dr. Brito, cujo copidesque é capaz de não tremer uma vírgula ao noticiar o atropelamento da própria mãe sem um mísero ponto de exclamação. Por essas e outras, o maior dramaturgo brasileiro foi persona não grata no JB. Outra, e das menos cruéis, embora um tanto covarde, foi zoar dos calcanhares sujos das repórteres que batiam perna na rua em busca de notícia. As princesas ficavam putas da vida e com razão.
São tantas as emoções, Roberto, o Carlos. Os anos 1950 foram os da reforma gráfica e da reinvenção estilística. Os anos 1960, Dines e o jornal empresa. Os anos 1970, casa nova, abertura e o começo da crise. Os anos 1980, a redemocratização. Depois, o abismo.
Antes, ainda na abertura do prendo-e-arrebento do Figueiredo, o destino ou o acaso, um deles ou os dois juntos, o fato é que escrevei e publiquei no Caderno B um artigo-reportagem intitulado Os Barões da Psicanálise, 23 de setembro de 1980. Pra quê. Dei voz à crítica mais radical da psicanálise já feita até então. E não era crítica de inimigo não, foi feita pelos próprios psicanalistas. Helio Pellegrino, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi denunciaram entre outras coisas o apoliticismo dos psicanalistas, denunciaram a gerontocracia encastelada nas instituições, o alto custo do tratamento, na verdade elevadíssimo, a precária formação dos analistas nos seus institutos, submetidos a um Freud aguado e um Lacan diluído com ênfase na decoreba de Melanie Klein. Foi uma crítica genérica, nenhuma instituição foi citada nominalmente. Não obstante, a direção da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), filiada à International Psychoanalytical Association (IPA), fundada por Freud, transformada na veneranda igreja – a direção vestiu a carapuça, expulsou Pellegrino e Mascarenhas sem direito de defesa, sem voz nem voto. E depois mentiu, dizendo que não tinha expulsado. Foi uma novela diária. Expulsou ou não? Perguntava Cid Moreira no Jornal Nacional. Golpe de sorte. Atirei no que vi, acertei no que não vi.
Durante semanas, a psicanálise estava em cartaz no horário nobre da televisão. Os cartunistas e chargistas deitavam e rolavam, sobretudo Ziraldo. Não havia palavras na imprensa que pudessem cobrir sem distorção o que rolava nos arraiais psicanalíticos, sempre muito fechados, muito exclusivos. Eu lhes dei palavras. Fazia formação analítica ao mesmo tempo em que trabalhava como jornalista. A direção do JB quis me testar, tirando-me da cobertura. Mas os meus colegas repórteres Cilea Gropilo e Fritz Utzeri confirmaram tudo que apurei. Mais um exemplo que confirmava Nelson Rodrigues sobre o delírio da neutralidade e da objetividade. Estamos todos implicados, verdade psicanalítica.
É ainda Nelson Rodrigues que invoco, pedindo aos deuses que apareça alguém com seu gênio para dar conta da tragédia brasileira encarnada num personagem singular – o tenente-médico Amilcar Lobo. Lobo participava das torturas no quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, Tijuca (ah, o bairro envergonhado de ser subúrbio, de onde procede grande parte da mentalidade arrivista que leva alguns ao podre de chique da Barra da Tijuca com direito a estátua da liberdade e tudo, bem colonizada gangue miliciana e bolsonarista assassina de Marielle, o Brasil bonito). Lobo testava a resistência dos presos políticos, informando aos seus oficiantes da morte se resistiriam ou não a mais uma sessão de porrada no pau-de-arara, com choques elétricos nos genitais femininos, ou com cobras no escuro das celas só pra assustar. Lobo se tornou humano. Fazia análise com Leão Cabernite, da SPRJ. Tomado por uma crise de consciência, resolveu denunciar a tortura e os torturadores, assunto até então mantido tabu pelo glorioso Exército brasileiro, cujo patrono é Caxias, incapaz de uma barbaridade dessas, desde o tempo da Guerra do Paraguai, para onde os negros escravos eram mandados como bucha de canhão a troco da boa vida em liberdade, os chamados Voluntários da Pátria, hoje nome de rua em Botafogo, no Rio.
Passaram-se seis anos. Em 1986, Helio Pellegrino descobre a treta e denuncia no JB: dois pesos e duas medidas: eu e Mascarenhas expulsos, e um torturador em formação analítica? Zuenir Ventura edita a série Psicanálise da Tortura. E aí Leão Cabernite comete o erro grave: rompe o sigilo analítico e desmente as denúncias de Helio. Mentiras de comunista. Acontece que Lobo denunciou a tortura e os torturadores, deu nomes, hoje idolatrados por Bolsonaro. Sua morte misteriosa é tida por queima de arquivo, segundo testemunho de sua mulher. Pellegrino e Mascarenhas foram reintegrados à sua instituição por decisão judicial. Em 2000, tocados por essas histórias, o psicanalista René Major e o filósofo Jacques Derrida convocaram os chamados Estados Gerais da Psicanálise. A psicanálise é privilegiada no trato com a crueldade humana, disse Derrida. Micro-histórias que levam à macro-historia do Brasil. Só na Constituição de 1988 é que a tortura foi capitulada como crime contra a humanidade. Há um fio condutor desde os Barões da Psicanálise à Psicanálise daTortura e à convocação dos Estados Gerais. Faltou dizer isso no livro de Cezar Motta, cuja leitura fortemente recomendo
“Micro-histórias que levam à macro-historia do Brasil”… fatos e histórias que se fazem mais atuais do que nunca! Valeu Roberto!
Foi interessante ouvir de vc, Roberto, os bastidores de uma dessas histórias do JB, q foi “Os Barões da Psicanálise”, e o seu enredo de novela, torturadores versus A Psicanálise e sua ética, em meio a figuras tão conhecidas…
Ler isso hoje me dá arrepio, tão próximos nos encontramos de novo do clima de exceção.
“Meninos, eu vi” – e viveu. Histórias curiosas q acrescentam ao livro do Cesar Motta personagens q marcaram época no Rio do século passado.
Parabéns Roberto, um deleite a leitura.