[Coautores: Carlos Augusto Damasceno[1] e Weiny César Freitas Pinto[2]]
Sabemos de longa data que disciplinas que utilizam como método de abordagem teórica ferramentas reflexivas são consideradas, por boa parcela da população, como infrutíferas, fomentadoras de ideologias, doutrinárias e opostas à ordem social (Iki, 2018). Apesar disso, em 2 de junho de 2008, com a Lei Federal n° 111.684, o ensino de filosofia e sociologia passou a ser obrigatório na educação privada e pública do Brasil (Sardá, 2018, p. 24). No entanto, hoje, mesmo tendo sido legalmente instituídas há tão pouco tempo, o cenário para a existência de espaços de reflexão na sociedade não parece ser agora muito diferente do que aquele que encontrávamos no passado dessas disciplinas, ou seja, há desafios enormes para a manutenção de sua existência nas escolas.
Nesse sentido, em 2016, por exemplo, o ex-presidente Michel Temer aprovou medida provisória que reformulou o ensino médio, retirando a obrigatoriedade de tais disciplinas. A partir de então, uma grande discussão entre profissionais da área e especialistas do assunto se instalou. Problematizou-se a ideia, estabelecida sem qualquer debate público, de deixar apenas Português, Matemática e Inglês como matérias obrigatórias, tornando, a partir de então, Filosofia, Sociologia, Arte e Educação Física como disciplinas optativas (Fajardo, 2017). Cabe aqui a seguinte interrogação: podemos considerar a retirada dessas disciplinas um sintoma das dificuldades enfrentadas por saberes de caráter prioritariamente reflexivos, como é o caso da filosofia?
Posto isso, o intuito deste ensaio é, inicialmente, refletir sobre um panorama conceitual elaborado pelo filósofo Alain Badiou acerca das razões que fazem da filosofia uma disciplina desvalorizada na contemporaneidade; em seguida, descrever possíveis consequências dessa ação e, por fim, propor quatro ações, coletivas e individuais, que podem aplacar o problema da desvalorização dos saberes críticos, mesmo que os parâmetros legais e institucionais ainda continuem desprestigiando e subalternizando essas disciplinas na educação nacional brasileira e, consequentemente, em nossa sociedade.
Se, de um lado, “[…] é difícil dar-se uma definição genérica de filosofia, já que esta varia não só quanto a cada filósofo ou corrente filosófica, mas também em relação a cada período histórico […]” (Japiassú; Marcondes, 2001, p. 77), de outro, filosofar é, em geral, um convite para a reflexão crítica. A filosofia é importante porque nos conduz aos seguintes resultados:
[…] A) ensina-nos a criticarmos (não rejeitar, mas passar ao crivo, examinar) as opiniões recebidas ou impostas, as tradições transmitidas e as ideias admitidas; B) ensina-nos a ultrapassarmos o conformismo e o não conformismo em vista de uma coerência sempre maior do pensamento e da ação. (Japiassú, 1997 p. 41)
Em outras palavras, pensar filosoficamente é diferente do “pensar comum”, pois requer esforço, dedicação e aprendizagem. Por conseguinte, a filosofia não é propriamente a “sabedoria”, mas a “busca” pela sabedoria. É o reconhecimento da incompletude do saber e requer muita paciência e maturidade para suportar a angústia da dúvida. Em síntese, é um desafio, mesmo para os mais corajosos e perseverantes.
Alain Badiou, também desejando caracterizar a prática filosófica, descreve que a filosofia requer uma “revolta lógica”. Isso significa que a filosofia é constantemente inquieta com a realidade dada e que nem mesmo o filósofo está satisfeito com as suas próprias concepções e respostas (Badiou, 2011, p. 11). Essa inquietação persistente e profunda seria o fundamento primeiro da filosofia, que se somaria à lógica, na busca por uma razão coerente, universal e na disposição em correr os riscos para isso necessários (Badiou, 2011, p. 11-12).
Para nos lembrarmos concretamente do tipo de risco que se trata, evoquemos aqui duas figuras importantes: Sócrates, notoriamente morto por ser acusado de corromper a juventude ao ensinar sua filosofia (Metropolitan, [s.d]), e Paulo Freire, educador e filósofo brasileiro, preso e exilado durante o regime militar por alfabetizar os pobres (UOL, 2005). Esses dois casos exemplificam algumas consequências negativas que podem advir sobre aqueles que lutaram e lutam em prol da atitude crítico-reflexiva.
Segundo Badiou (2011, p. 13), o mundo contemporâneo não gosta e não quer a filosofia. Ele aponta quatro razões que fazem com que a nossa realidade atual seja carente da prática filosófica: 1) a falta de estima para com a revolta e a crítica; 2) o desapreço em relação à lógica, à coerência racional; 3) a oposição à universalidade, e 4) o temor à aposta, ao acaso, ao risco, ao engajamento. Todos esses elementos são característicos de nossa contemporaneidade.
Em outras palavras, a ausência de revolta e crítica denota o nosso conformismo em aceitar a forma como a realidade nos é imposta. Já o desapreço à lógica e à coerência racional se traduz na fluidez, na superficialidade e na velocidade do pensamento contemporâneo. Quanto à oposição à universalidade, trata-se da crença que nutrimos em relação ao dinheiro, à subjetividade cultural e à relatividade contextual. Por último, nosso temor à aposta, ao risco, reflete nossa obsessão pela segurança, em suma, o desejo desenfreado por tudo que é previsível, calculado, pela fuga do acaso, pela fixidez de nós mesmos (Badiou, 2011, p. 13-14).
Por tudo isso, Badiou conclui que a filosofia está ameaçada. Uma das formas dessa ameaça pode ser expressa pela mudança da legislação educacional em desfavor da filosofia e sociologia, como a ocorrida no Brasil. Outra expressão de ameaça pode ser constatada quando nos deparamos com a má formação crítica do cidadão, como, por exemplo, a dificuldade de ler, compreender e pensar criticamente, sem a necessidade de plataformas digitais (redes sociais, sites de busca etc.).
Pressupomos que, por esse motivo, diariamente experimentamos uma carência de pensar criticamente, justamente porque não somos ensinados para isso, somos ensinados para memorizar, assinalar e descrever as respostas certas, independente do que consideramos criticamente a respeito delas. Por consequência, assim como os grandes computadores que armazenam informação, nos tornamos igualmente limitados. Esse dispositivo tecnológico, não tendo ação própria, não sabe o que de fato fazer caso não exista interação entre o disco rígido, o teclado e o estímulo humano, assim como nós, no caso exemplificado acima.
Em função disso, sendo indiscutível a necessidade de desenvolver a prática da filosofia, é necessário, em primeiro lugar, compreendermos que o pensamento filosófico precisa de tempo. A reflexão crítica requer calma e paciência. Em segundo lugar, precisamos ser seletivos. Não é possível pensar criticamente tudo a todo tempo, como se fôssemos especialistas da totalidade. Ora, não seria justamente esta a atitude primeira para o exercício da ciência: ter a consciência que pessoas virão e continuarão a crítica depois de nós, assim como nós viemos e continuamos a crítica depois de outras?
Consequentemente, acreditamos que, para mantermos a filosofia viva e talvez mais segura do que ela se encontra hoje, precisamos, em terceiro lugar, garantir às pessoas amplo acesso aos conteúdos tanto da filosofia como da sociologia, por exemplo. Precisamos garantir que os textos clássicos, os de hoje, os que ainda virão, sejam lidos, revisitados e estudados. Essa atitude, talvez a mais importante, pode vir acompanhada de estratégias como a utilização de canais de Youtube, por meio dos quais filósofos e sociólogos podem se fazer presentes em espaços da mídia popular, além das redes sociais, televisão, rádio, jornais etc., bem como também a realização de “cafés filosóficos”, que podem igualmente contribuir para o amplo acesso público ao conhecimento produzido pela filosofia, pela sociologia e pelas demais ciências humanas.
Por último, em quarto lugar, não podemos tomar tudo isso como algo dado. Nenhum dos três pontos anteriores são receitas prontas. Talvez estejamos olhando a superfície, seguramente nossa argumentação é falha em algum aspecto, enfim. Se o que escrevemos faz sentir que certos pontos precisam ser aprimorados, sem dúvida estamos no caminho certo, pois, para que o pensamento crítico se estabeleça, o fundamental é estarmos dispostos para esse encontro que acomete o diálogo, que nos torna mais tolerantes uns com os outros, independente das posições a serem tomadas.
Referências
BADIOU, A. A situação da filosofia no mundo contemporâneo. In: Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. p. 11-14.
IKI, Mário. Sobre a filosofia e o novo ensino médio. Estadão, São Paulo, 28 de set. 2018. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/blogs/blog-dos-colegios-santa-maria/filosofia-e-sociologia/. Acesso em: 24 de nov. 2020.
FAJARDO, Vanessa. Entenda a reforma do ensino médio. G1, Rio de Janeiro, 08 de fev. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/entenda-a-reforma-do-ensino-medio.ghtml>. Acesso em: 04 de dez. 2020.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Disponível em: <http://raycydio.yolasite.com/resources/dicionario_de_filosofia_japiassu.pdf> Acesso em: 06 de dez. 2020.
JAPIASSÚ, Hilton. Um desafio à filosofia: pensar-se nos dias de hoje. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1997.
SARDÁ. D. N. A filosofia no ensino médio no Brasil e na França: uma comparação intercultural de livros didáticos e de textos oficiais de educação. Linha D’Água, São Paulo, v. 31, n° 3, p. 19-43, set.-dez. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v31i3p19-43> Acesso em: 10 de dez. 2020.
METROPOLITAN, The Museum of the Art. The Death of Socrates (1787). New York, NK. [s.d]. Disponível em: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/436105> Acesso em: 12 de dez. de 2020.
UOL. Paulo Freire. 01 ago. de 2018. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/biografias/paulo-freire.htm> Acesso em: 14 de dez. de 2020.
[1] Professor concursado de filosofia da Rede Pública Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: cadvog@gmail.com
[2] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O texto é o nono da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo Moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
- Rap: Crítica e Resistência, de Thalyne Barros Soares e Isabella Krein Soares, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/.