Tudo ia quase bem quando o mundo ia mal mas o carnaval ia bem. A gente gostava da ideia, tão corpórea quanto metafilosófica, de que o carnaval apontava para: a imediaticidade do possível e a realização imediata do impossível (num plano suprassensível).
A carne do corpo na rua ria. A rispidez do mundo não sumia, mas sucumbia diante da efervescência voraz do transe. O corpo coletivo toma a cidade, confunde seus sentidos, sobrepõe seus fluxos. Flui, flana, fode, fica. Tem som pra todo lado. Os vendedores de cerveja seguem sendo os mesmos, afinal nada é reinventado da perspectiva estrutural. Mas há um ensaio num aspecto microespaço-temporal dum devir mundo outro e imediato, da imediaticidade de um outro modo de socializar que se concretiza. O laboratório mais bem-sucedido de práticas de não sobrevivência, da vida em estado sujo de eloquência, gozo, transe.
O cheiro de mijo é óleo essencial que qualifica o urbano. O regurgito frenético de um ano de passividades acumuladas se acotovela em mimese dum agora infinito. O mundo nem para nem acaba. Acaba de parar em movimento. Para num movimento, numa ruptura – indevida – predefinida para acabar. Uma porção de dias e noites contra tudo, tubo de ensaio prático-possível atingível no plano da carne, inatingível como plano do capital. Um tempo-momento feito para acabar e ao mesmo tempo prelúdio do que poderia vir a ser um outro tempo do mundo. Nada vindo para ficar. E por isso tão permanente. O carnaval. A porra. A eloquência múltipla sonora surubenta: benta. Festa religiosa. Festa pagã. Fresta. Férrica. Fodida. Foderosa. Forte porque sensível e sônica.
O acontecimento contra o tempo, num tempo sem acontecimento. O tempo que emergia fora da tela, o tempo tátil. Tática de tomada da cidade. A cidade tântrica, atravessada por uma avesso do que a destruiu, corroendo experimentalmente o ethos do trabalho, jorrando uma hecatombe de prazeres carnais: carnavais.
Zona autônoma temporária pró e própria ao caos. Catarse com, pós, contra e além do caos. O caso em que o caos faz caso do caos. Cada canto o caos todo. Cada canto ecoa o som do (im)possível modo de experimentar a vida. Dias dados ao imponderável. A vida que só existe em quatro dias curtos e imensos. Curto-circuito da própria noção de dia. Dose tátil de remédio contra tudo que é tédio. O ano inteiro condensado para viver e experimentar quatro dias. Quatro dias em que a vida acontece contra o tempo, contra o ano, pelo ânus.
As escolas contra a própria noção de escola, ensinando tudo que não carece de livro. O fetiche do possível em forma de quatro dias.
Mas agora, neste ano: tudo por hora não mais.
A Vai-Vai esvai.
O mundo ia acabando inacabado mas foder com o que fodia com a porra toda aí foi demais. A catástrofe a gente já sabia que vinha em curso, contabilidade de corpos em valas, a contagem regressiva pra nossa vez, a ficcionalização da economia e do tesão. A tela. O Tao da tela. O tudo contra o corpo. Mas a esperança é (era?) o tempo catarse carnaval. Se não tem o carnaval, o que poderá haver? A cidade apodrece sem nossa rica mistura de mijos.
Tem dimensões do fim do mundo que não dançam. Nem tocam, nem têm tesão. Tampouco sabem o que é o direito à cidade ou uma zona autônoma temporária. O fim do mundo em sua permanente continuação não respeita os quatro dias de arrefecimento que a gente achava que tinha. O fim continuado do mundo invadiu e inviabilizou o carnaval. O fim do mundo em seu estágio suprassensível de realização arregaça com o átimo do que se empenhava a oferecer seu outro possível. A força dessa façanha. A libidinosa arte de dançar em meio aos desmoronamentos vira desencontro. Não há bloco na rua. Marchinha, malemolência, glitter, calçada, suor, trombone, isopor, gelo, beijo, bafo, banda, bunda: não há. Não há o que nos devolva esses quatro dias.