Dom Cândido Penso faleceu em 1959, antes de ver Goiás se transformar com a inauguração de Brasília e antes de presenciar a reformulação da Igreja Católica pelo Concílio Vaticano II. Durante as duas décadas em que viveu e trabalhou na cidade de Goiás, Dom Cândido trouxe grandes contribuições para a modernização e a ampliação de nossa riqueza cultural. Contudo, décadas após o seu falecimento, sua produção visual ainda permanece praticamente desconhecida do público, a não ser por um único livro de fotografias publicado em 1996, a partir do qual leio as imagens produzidas por Dom Cândido e de onde extraio as informações de ordem biográfica aqui expostas[i].
De família italiana, Dante Penso nasceu em 1895, em Bellinzona, cidade localizada ao sul da Suíça, quase na fronteira com a Itália. Sua mãe morreu durante o parto e o menino foi transferido para Veneza, onde foi criado por tios paternos. Aos 16 anos, ingressou na ordem dominicana e tomou o nome de Cândido Bento. Já entregue à religião, participou como soldado da saúde da Primeira Guerra que assolou a Europa entre 1914 e 1918. No momento de ascensão do fascismo italiano, em 1922, foi ordenado sacerdote. Trabalhou em Veneza, Bérgamo, Módena, Turim e Bolzano. Padre, professor, autor de conferências pelo rádio, fotógrafo, interessado em presépios e alpinista, teve intensa atuação em seu país até ser enviado ao Brasil, no momento em que o mundo, e a Itália, entrava na sombria crise da Segunda Guerra Mundial.
Chegou à cidade de Goiás em 1939 – nomeado aos 44 anos de idade como padre superior do Convento de Goiás –, na época em que o país vivia o Estado Novo de Getúlio Vargas e no momento em que o Estado de Goiás passava por grandes transformações políticas, com a transferência da capital do Estado da cidade de Goiás para Goiânia. Encontrou na antiga capital quase abandonada e na vasta terra sertaneja de sua prelazia um grande desafio e um grande trabalho a ser realizado.
Na arcaica Goiás Velho, Dom Cândido fincou sua morada e construiu sua obra, que ultrapassou o serviço religioso e transbordou para a investigação do Brasil, para a ação social, para a fotografia e para o cinema documental. A visão que tinha do mundo abarcava as questões problemáticas da realidade que tinha para trabalhar e o fazia operar sintonizado com a modernidade e com os avanços da tecnologia da imagem, manipulando a fotografia e o cinema em favor da divulgação de seu trabalho e de suas ideias.
Em 1948, na cidade de Bolonha, Dom Cândido foi consagrado bispo e nomeado titular do Prelado de Santana do Bananal, tendo sua cátedra na cidade de Goiás. Em 1956, com as transformações na política eclesiástica promovidas com o deslocamento do núcleo clerical para Goiânia, foi nomeado bispo residente de Goiás. Ao todo foram duas décadas de expressiva atuação na cidade de Goiás e em cidades do interior goiano como Aruanã, Ceres, Bandeirantes, Britânia, entre outras, além da Ilha do Bananal, que visitava com freqüência. Realizou em Belém, Porto Alegre e em cidades da Argentina e do Chile palestras sobre aspectos de sua complexa diocese. Viajou por diversas vezes à Europa e aos Estados Unidos com o intuito de angariar apoio para o desenvolvimento de seus projetos e, nessas circunstâncias, os documentários visuais e audiovisuais eram mostrados em função de seus argumentos.
Apesar de ter sido um missionário que se embrenhava no ermo sertão para evangelizar sertanejos e conviver com indígenas, Dom Cândido foi um homem requintado, apreciador da fotografia, ouvinte de música erudita, leitor de revistas de cinema e interessado na sofisticação formal do modernismo. Foi ele quem trouxe para Goiás o italiano Nazareno Confaloni, artista e também padre dominicano, com o propósito de pintar os 15 afrescos na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e outros mais em sua capela particular no convento, na cidade de Goiás. Foi ele um dos responsáveis pela criação do Museu de Arte Sacra da cúria de Goiás, que hoje conserva na Igreja da Boa Morte a coleção de obras do mestre Veiga Valle e de outros artistas dos séculos 18 e 19, além de peças do ritual litúrgico.
Mais que reportar dados biográficos, o propósito deste texto é chamar atenção para a sua produção fotográfica, que, iniciada na Itália, formou em Goiás um conjunto de registros que importam como documentos de valor histórico e, por que não, até estético.
Dom Cândido foi arrojado em sua época. Operava através das imagens, conhecia o poder de persuasão subjetiva e a capacidade de comunicação não verbal das mídias que nasceram com a modernidade. A fotografia em preto e branco ou os slides coloridos (que mandava revelar em Nova York) e mesmo o filme foram os meios que adotou para registrar seu encontro com a realidade das culturas sertaneja e indígena, com a vida precária da população abandonada com a qual se deparou em suas muitas viagens pelo interior de Goiás. Seu modo de conhecer e de entender a realidade foi documentando-a e fixando-a em imagens.
Tudo leva a crer que a fotografia de Dom Cândido durante seu período na Itália não teve o mesmo papel que passou a ter durante seu trabalho no Brasil. O fotógrafo ainda não tinha um compromisso tão intenso com a fotografia e a mantinha como atividade de entretenimento, não como ferramenta para a investigação esmiuçada da realidade. O foco de seu interesse dissolvia-se no registro de aspectos diversos do cotidiano ou concentrava-se na paisagem, que foi explorada em texturas pictóricas, em gradações de luz e sombra, em relações de proximidade e distância. Entre as melhores fotos deste período, estão imagens produzidas durante as escaladas nas montanhas (talvez para o sacerdote/fotógrafo a escalada fosse uma forma de aproximação do sagrado, uma operação mágica que enlaçava no alto o homem ao divino). Essas fotos revelavam a densidade atmosférica dos fenômenos naturais provocados pela luz do sol sobre a umidade da névoa ou das nuvens, mostravam as diferentes faces dos rochedos sobre os quais o fotógrafo experimentalmente inseria sua imagem por meio da projeção de sua sombra. As fotos revelavam um ambiente místico e enigmático, totalmente distinto do ambiente que ele depois registrou em sua produção brasileira.
Ao chegar à cidade de Goiás, Dom Cândido começou um processo de investigação, conhecimento e documentação do terreno do qual seria o responsável a partir de então. Contavam que ele passou cinco anos viajando e fotografando intensamente. A grande extensão de sua prelazia o obrigou a fazer muitas viagens, primeiramente a cavalo por trilhas no meio do mato ou a canoa pelos rios, depois em carros por estradas lamacentas e pontes quebradas ou em barcos a motor. Nas viagens, o equipamento fotográfico o acompanhava. Mesclaram-se o missionário errante com o fotógrafo viajante, e o que resultava desta mescla assemelhava-se ao olhar de um etnógrafo em busca da identidade de uma terra, de seus povos e de suas culturas. Há um certo aspecto antropológico presente na produção de Dom Cândido no modo como ele enfocava a sociedade e a cultura goianas, seja citadina, seja sertaneja, seja indígena, e na maneira como analisava visualmente sua constituição. A fotografia ganhava corpo diante dos temas que a realidade goiana exibia ao fotógrafo.
De toda a sua experiência no interior de Goiás, o contato com os indígenas, pela própria relação de alteridade, parece ter provocado impacto e encantamento em Dom Cândido. No convívio com os Karajá e os Javaé, em seus respectivos aldeamentos, ele produziu fotografias sobre diferentes aspectos dessas sociedades. São imagens realizadas por um fotógrafo que desfrutava de intimidade com as aldeias e que estabelecia relações de apreço e respeito para com os seus membros. Ele tinha a cultura indígena como um de seus interesses. Suas fotografias documentaram a vida cotidiana de adultos e crianças, de homens e mulheres nus ou vestidos com roupas ocidentais, registraram as divisões de trabalho entre os gêneros, as relações familiares, a maternidade, as habitações, as tecnologias e ferramentas, os cuidados com os mortos, os rituais sagrados e o lazer de grupos descontraídos. Um dos momentos de forte plasticidade na produção fotográfica de Dom Cândido, os retratos de indígenas exibiam os retratados em suas individualidades, flagravam suas personalidades sociais e psicológicas, valorizavam sua tipologia física, ressaltavam a dignidade e a sabedoria dos velhos, a beleza altiva e o vigor dos jovens.
Dom Cândido fotografou o problemático e até traumático encontro entre as culturas cristã europeia e indígena brasileira. Do trabalho evangelizador das populações autóctones não pode ser ausentado o aspecto colonizador, portanto, apropriador e inevitavelmente violentador.
Uma fotografia de muito interesse mostra um dos frades de sua comitiva, Frei Tomaz, vestido com o característico hábito dominicano, portando cocar na cabeça e arco e flecha nas mãos. É uma imagem surpreendente e ao mesmo tempo um documento raro e significativo dos diferentes níveis de relações entre padres e indígenas travados na fronteira longínqua de Goiás com Mato Grosso.
As muitas viagens com finalidade missionária foram também expedições culturais e de investigação fotográfica. Dom Cândido tem outro núcleo de sua produção nas imagens da vida sertaneja: detalhes da vida cotidiana nos lugarejos e nas fazendas mais distantes; a beleza contida na simplicidade e na pobreza; as dificuldades da precariedade estrutural; a população devota, descalça e analfabeta; gente roceira moradora de ranchos de pau a pique; família sem terra acampada no mato (já naquela época!); cavaleiros e peões, caçadores e pescadores; trabalhadores rurais; boiadas e boiadeiros; carros de boi; foliões e catireiros; a bravura do sertanejo triunfando sobre jacarés, onças, sucuris; nem mesmo o corpo de homem sendo velado na rede, como era comum devido à pobreza, escapou de suas lentes.
Outro segmento de fotografias refere-se aos registros da vida e da paisagem da cidade de Goiás: vistas da antiga igreja e do processo de construção da nova Igreja de Nossa Senhora do Rosário, sede de seu bispado; a Catedral de Sant’Ana ainda em construção; o Mercado Municipal; os postes da rede elétrica da Rua da Abadia; o Rio Vermelho e suas pontes; os seculares monumentos civis; as ladeiras dos subúrbios; vistas panorâmicas da cidade; os eventos sociais; as festividades religiosas na Igreja do Rosário; grupos de estudantes do Liceu de Goiás; a banda de música; o menino entregador de leite; a lavadeira com trouxa na cabeça e viola na mão. Paisagens, acontecimentos e pessoas imortalizados na imagem. Uma foto curiosa desta série registrou o transporte motorizado que fez o trajeto da cidade de Goiás a Goiânia, a jardineira Expresso Relâmpago, símbolo do desenvolvimento que adentrava no interior de Goiás. Aliás, Goiânia também foi fotografada, com a Praça Cívica ainda em construção.
A Serra Dourada que bordeja a paisagem da velha Vila Boa também foi motivo de fotografias que realizou durante escaladas. Visitar a Pedra Goiana, que durante séculos foi um dos símbolos da antiga capital goiana, até ser derrubada por vândalos, era uma forma de lazer bastante comum à população da cidade. Subir montanhas era um hábito que Dom Cândido trouxe da juventude e, na Serra Dourada, pôde reviver memórias de suas escaladas nos rochedos italianos durante sua juventude.
A missão religiosa de Dom Cândido e de seus companheiros foi também amplamente documentada. O convívio com os frades no convento, as viagens de evangelização em canoas, a cavalo, em caminhão e mesmo em embarcações, os momentos de lazer; o processo de evangelização dos sertanejos; o contato entre o catolicismo e as crenças indígenas; as pomposas celebrações e procissões; o exercício dos sacramentos nas cerimônias de primeira comunhão e de crisma, ou no casamento caipira feito durante as viagens pelo sertão; o trabalho das irmãs dominicanas; as celebrações de missas em altares improvisados às margens do Rio Araguaia; os trabalhos sociais como o Hospital São Pio X de Ceres, o Orfanato São José e o Asilo São Vicente na cidade de Goiás (instituições fundadas pelo bispo). Os registros do cotidiano dos religiosos em seus contatos com culturas as mais diversas formam um conjunto de valor, à medida que documentam encontros que sabemos terem sido intensos, mas cujos registros visuais são escassos.
Por fim, quero destacar o agrupamento de fotografias de uma categoria que Dom Cândido sempre exercitou, como se por meio dela pudesse chegar ao estado de autoconhecimento: o autorretrato. Processo de mergulho que deriva da proposição socrática “conhece-te a ti mesmo” e que resulta na revelação de uma imagem ontológica de quem opera com a consciência de si e de ser no mundo. O fotógrafo investiu na fotografia de sua própria imagem para configurar a investigação sobre sua existência, sua subjetividade e sua aparência, fez do sujeito o objeto, e vice-versa.
As fotos que realizou na Itália projetando sua sombra sobre as superfícies acidentadas das montanhas foram também pensadas como autorretratos. Dom Cândido fotografou-se nos papéis de alpinista, padre, bispo, fotógrafo e, sobretudo, como viajante. Ora o sacerdote de batina, ora o homem simples em roupas civis. Em dois autorretratos, ambos executados nas praias do Rio Araguaia, Dom Cândido se fotografou exibindo a envergadura das asas de grandes aves: em um deles vestiu-se com batina, no outro vestiu-se com calça e camisa e parecia mais um fotógrafo em expedição do que propriamente um padre. Ele posava exibindo grandes pássaros como uma forma de demonstrar o tamanho da exuberante natureza que tinha em sua prelazia. Durante viagens, ele posicionava a câmera em uma das margens e se fotografava atravessando a cavalo um riacho.
Seu cartão pessoal era ilustrado com um autorretrato no qual se mostrava como brincalhão, ironizando sua própria imagem: iluminado pela lateral, o rosto de perfil, sorrindo com a boca escancarada, projetava sua sombra distorcida sobre a parede fixando a silhueta de um personagem caricatural e quase expressionista. O duplo simbólico e o fantasma do eu projetado na sombra mostravam algo mais profundo do retratado, algo de substância imaterial e de significação existencial.
[i] Frei Reginaldo Orlandini. Cândido Penso: bispo e fotógrafo. Goiânia; Gráfica e Editora Líder LTDA; sem data
Fique com Deus!
Chiara Sinopoli Bonfiglio