Quem acompanha a história da literatura sabe o quanto Gustave Flaubert (1821-1880) é importante na configuração da linguagem literária moderna, que no século 19 ganhou autonomia como arte pela arte, arte pura – com procedimentos técnicos inovadores, construtores de uma realidade interna girante em torno de si mesma –, justamente com a turma do “mot juste”.
Quem leu Machado de Assis (1839-1908) e Marcel Proust (1871-1922), entende o quanto essa inovação flaubertiana fecundaria a criatividade de ambos. Obviamente, Machado é Machado e Proust é Proust, porque souberam alimentar-se de tudo que lhes precedeu, não só de Flaubert. Eles, no entanto, imbuíram-se das técnicas do gênio francês, que deu à literatura a ideia de projeto artístico.
Um dos mestres da crítica contemporânea, Harold Bloom (1930-2019), profundo estudioso das estruturas narrativas, fez uma lista dos cem gênios exemplares da linguagem (em turmas de dez), organizada no livro Gênio: Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura. Nesta lista, Bloom colocou Machado de Assis no mesmo combo de Flaubert, que encabeça o grupo, junto a nomes como Eça de Queirós, Jorge Luis Borges, Italo Calvino, William Blake e Rainer Maria Rilke. São gênios, segundo Bloom, do campo da força criativa, da tensão geradora de mundos.
Proust está nessa mesma lista, só que em outro grupo, o dos autores cuja inteligência se encontra amplamente aberta à contemplação da sabedoria, vibrando outra onda de criatividade; embora as fronteiras sejam sempre muito borradas com esse tipo de gente.
A narrativa proustiana tem realmente uns laivos de profunda busca filosófica (“A morte age do mesmo modo que a ausência” ou “Imaginamos o futuro como um reflexo do presente projetado num espaço vazio” ou “Logo que deixou de ser louco, tornou-se idiota. Há males de que não se deve buscar a cura porque só eles nos protegem contra males mais graves”).
Junto com Proust na sala de dez, estão também Nietzsche, Kafka, Kierkegaard, Becket e vários dramaturgos, como Molière, Ibsen e Tchekov.
Em outro livro, Shakespeare: A Invenção do Humano, Bloom diz que não haveria nem Freud, nem Nietzsche, nem Proust – simplesmente três gigantes abissais do pensamento crítico-estético – sem William Shakespeare (1564-1616). Machado também ficaria manco, neste caso (não nos esqueçamos, no entanto, de que Hefesto, deus do fogo e das forjas, o maior gênio do Olimpo, claudicava).
Vamos pular esta discussão. Joguei-a no ar apenas para dizer que, tudo bem, Shakespeare é englobante mesmo, mas Proust e Machado, repetindo, têm uma dívida estética importante com Flaubert, sem levar em conta outras influências como as de Jonathan Swift, Xavier de Maistre, Laurence Stern, Dostoiévski e Schopenhauer sobre o autor de Esaú e Jacó, mas todas de conteúdo, não de forma.
A inserção de Machado nesse ninho olímpico merece um pequeno aparte, porque Flaubert e Proust eram da fausta burguesia francesa, ingressos na alta roda de Paris, inquilinos do centro do mundo, e Machado era um pobre preto das encostas cariocas.
Segundo Bloom, Machado, esse preto genial, esse preto que surgiu na periferia do capitalismo e escalou o Everest da linguagem em pleno período escravista, esse preto que de tão preto e tão pobre, e gago, e epiléptico e tímido, até parece um milagre ter existido como autor de tamanha grandeza, foi “o maior literato negro surgido até o presente” (2002), e um dos maiores, independentemente da cor. E continua sendo, porque se mantém vivo, embora morto, vivo como de fato está sua obra, morto como defunto está seu corpo.
Falando em defunto, Brás Cubas chega em boa hora. Sua narrativa nos lança pistas de como Machado de Assis assimilou os procedimentos flaubertianos. Exemplo estético dessa assimilação é o conjunto de uma figura de linguagem muito peculiar na construção de imagens literárias, a metonímia, no que diz respeito à parte pelo todo. Não é o único procedimento. Mas comecemos por ele.
Vou utilizar dois romances para minhas considerações, sendo primeiro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, que inaugura a escala de cinco romances colossais de Machado. Mais adiante, falarei de Dom Casmurro, que segue dialogando com Flaubert, mas cuja sintonia maior é com Proust, por outros fios além dos flaubertianos.
Em Memórias Póstumas, o protagonista Brás Cubas é um morto septuagenário que narra do além. Faz isso em tom de galhofa (“o maior defeito deste livro és tu, leitor” ou “toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas”), mas também num alto grau de sarcasmo com a memória dos outros, às raias da crueldade, mas também filosófico, mas também poético e profundo.
Faz isso reunindo elementos da sociedade carioca de seu tempo, expondo o racismo e a exploração escravista, expondo as relações afetivas e econômicas dos homens de posse, seus conchavos para se manter no topo da pirâmide.
Faz isso expondo seus amores, como o de Virgília, paixão de infância que esperou o quanto pôde um matrimônio com ele, e a única coisa que ganhou foram os encontros às escondidas de amante, como amante fora ele de Marcela (que, “amiga de dinheiro e de rapazes”, tinha vocação para o concubinato), e como o amor de Eugênia, a coxa, que, rejeitada por Cubas, definhou silenciosamente, como num desfile trágico da existência.
Parte pelo todo
A primeira metonímia desta natureza já vem no título de um capítulo: “Em que aparece a orelha de uma senhora”, ao citar a presença de Virgília em sua vida. Quando observa seu velório e vê Virgília na vigília, Cubas também usa a metonímia, notando que ali “havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela.”
A famosa frase “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis” é o grande rótulo desse procedimento estético.
Vejamos agora no romance de Flaubert o quanto há dele em Machado, só por isto. Antes, um pequeno passeio pelo universo da obra em questão. O ano é 1840. O jovem Frédéric Moreau, de 18 anos, acaba de concluir o curso secundário e embarca numa viagem de navio pelo Rio Sena, de Paris até Nogent, sua cidade natal, para visitar a mãe viúva.
Ainda no porto da ilha parisiense de Saint-Louis, Frédéric vê a Senhora Arnoux, que entra na mesma embarcação com o marido, Jacques, e a filha pequena. O garoto de Nogent se apaixona pela mulher. É assim que começa A Educação Sentimental, romance de 1869, narrado em terceira pessoa.
Frédéric então se muda de vez para Paris. Enquanto usufrui da herança de um tio, ingressa na universidade e procura conquistar ao mesmo tempo distinção social e o amor da Senhora Arnoux. Na textura da trama, há uma série de tensões que se sobrepõem, como a tensão sexual de Frédéric pela Senhora Arnoux, a tensão política e social e a tensão estética em paralelo à jornada do protagonista.
À medida que a vida passa, Frédéric vai amadurecendo, testemunhando os rumos da história francesa e do poder, entendendo como funcionam os laços sociais e afetivos, como a economia gira nesse torvelinho de influências, como se conquistam as mulheres (torna-se amante de uma coquete, Rosanette, com o intuito de prazer, e de uma madame, Senhora Dambreuse, com o intuito de ascensão social).
Jogarei uma sequência de trechos aqui que não terão sentido narrativo, jogo-os apenas para efeito de comparação. Louco para ter acesso à intimidade da Senhora Arnoux, Frédéric faz amizade com o marido dela e passa a frequentar-lhe o escritório, onde, num certo dia, vê “a cauda de um vestido desaparecer pela porta que dava para as escadas”.
Em outra ocasião, nosso “herói” sai para beber com os amigos, entre eles, Dussardier, que lhes “mostrou o botequim, onde viram o descendente dos grandes, diante de um copo de ponche, na companhia de um chapéu cor-de-rosa”.
Na insistente procura pelo amor da Senhora Arnoux, Frédéric foi onde ela morava – Jacques Arnoux mostrou-lhe a casa – e, no afã de ver sua paixão, mirou o alto da escadaria. “Quando ela descia os degraus, ele viu-lhe o pé.” Em outro dia de visita, “uma touca de mulher surgiu na porta do vestíbulo”.
E assim segue o rol metonímico de Flaubert, desencadeando uma série de imagens de um jeito jamais visto na literatura, como por exemplo, “a porta entreabriu-se devagarinho, surgiu a aba de um chapéu, depois o perfil de Hussonnet”.
Ou, “pouco depois surgiram os capacetes da guarda municipal, distribuindo espadeiradas para todos os lados”, numa descrição histórica das insurreições de 1848, nas ruas de Paris, que derrubariam Luís Filipe do trono.
V de quê?
Não pretendo esgotar nada com este pequeno texto; é só um passeio pelo bosque, um sobrevoo por cima da paisagem exuberante da ficção de três grandes autores. Não se trata de uma análise totalizante de cada romance. Trata-se, isso, sim, de uma apreciação comparativa, levando em conta nichos narrativos que dialogam entre si.
É verdade que “há leitores que são tão obtusos, que nada entendem, se se lhes não relata tudo e o resto”, como diz Dom Casmurro, mas não é o caso dos nossos. Estes têm inteligência e repertório, que é basicamente o que resta necessário para ler Machado e seus pares.
Como já disse, Memórias Póstumas oferece ao leitor uma narrativa ao mesmo tempo melancólica e risonha, dramática e cômica. Uma comédia recitada desde o púlpito austero da eternidade, irônica e sarcasticamente cruel.
Um exemplo de crueldade e sarcasmo: ao visitar a moça que seria sua noiva arranjada, a fim de angariar prestígio e ascender na política, Cubas nota que a donzela tem uma perna mais curta que a outra e diz:
“O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”
Voltando às metonímias machadianas, elas são águas bebidas na fonte de Flaubert, é verdade, mas vejamos como Machado as ampliou para um patamar jamais alcançado. Na casa de dona Eusébia, Brás Cubas conversa com ela e escuta “um farfalhar de saias” e uma voz: “Mamãe… Mamãe”.
Em seguida, Cubas explica: “A voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve à porta, alguns instantes, ao ver gente estranha”. Era a figura de Eugênia, a moça coxa.
Numa outra cena, após se desvencilhar de uma senhora baronesa e seu séquito, que atrapalhou o instante de prazer com Virgília, Cubas deixa o local. Ao narrar o episódio, faz o seguinte comentário: “Enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo”.
Entre as metonímias machadianas, está uma que supera todas as outras porque concentra a figura da mulher numa só letra, mas não só isso, expõe o desejo, o sexo, a pulsão erótica como cerne da existência de Brás Cubas, um bon vivant que vive de renda (mesada do pai, depois a herança deste). A letra é a inicial de Virgília, assinada num bilhete enviado ao amante.
A letra se desenha no papel de um jeito tão particular que fica patente a intenção autoral de mostrá-la como ícone da mulher inteira e de suas partes íntimas, tanto o V do colo quanto o V do púbis, além de estar ali flagrantemente como inicial das palavras vulva e vagina. Esta iconografia surge no espaço narrativo como polifonia de sentidos, tanto como metonímia (a parte pelo todo) quanto como paranomásia (trocadilho), saturando as possibilidades de significação.
Décio Pignatari chamou a atenção para este fato, em sua pequena obra-prima Semiótica & Literatura, comentando:
“A crítica machadiana tradicional, acantonada em seus desvãos psicologizantes e filosofantes, viu-lhes os ‘tipos’, mas não a tipografia, e passou por cima, ou relevou (!) suas paranomásias, vulgarmente conhecidas por trocadilhos, por considerá-las indignas de um estilo escorreito.”
Eu só trocaria o termo crítica “tradicional” para crítica “cega” ou “moralista”, pois, afinal, a obra de Shakespeare, o clássico dos clássicos, está replena de obscenos jogos de palavras, embora não chegue ao nível da tipografia, pois Gutenberg ainda era o desígnio primitivo de uma revolução. A assinatura de Virgília é um exemplo de como Machado, neste caso mui especificamente, superou as investidas metonímicas de Flaubert.
Cinema e artes visuais
Se você reparar bem, em Flaubert, as imagens criadas pelo processo metonímico evocam planos cinematográficos, muito antes do cinema. Já em Machado, pelo mesmo processo, esse intrincado jogo de imagens é uma construção plástica semelhante à do cubismo.
Memórias Póstumas cintila metonímias. Note que partes do corpo se espalham como capítulos pelo espaço da narrativa. Neste sentido, o que Machado fez foi fragmentar a forma do corpo humano, deixando ao leitor a tarefa de juntá-la mentalmente, como lhe conviesse.
Se dermos uma olhada no índice, já temos uma ideia muito clara do que é isso: orelha, perna (“coxa desde nascença”), pé (“a propósito de botas”), nariz, braços (“O abraço”), cabeça, olhos, ouvidos (“olheiros e escutas”), pernas, triângulo de olhos e nariz (“entre a boca e a testa”), cabeça (“A barretina”, um tipo de chapéu feminino).
Pablo Picasso (1881-1973), que nasceu no ano do lançamento de Memórias Póstumas, só viria a lançar a primeira obra cubista em 1907, Les Demoiselles d’Avignon, ainda sem os traços fragmentados do objeto que eternizaram o estilo, como Três Músicos (1921) ou Guernica (1937). Mas o Bruxo já poderia, sim, estar reparando muito bem no movimento das artes plásticas francesas, além da própria literatura flaubertiana, com a perspicácia que só um gênio consegue ter.
Outros recursos antecipam elementos da arte abstrata, que apareceriam de modo similar décadas depois na pintura do holandês Piet Mondrian (1872-1944), por exemplo, e também na poesia concreta brasileira, 80 anos mais tarde.
O capítulo LV, “O velho diálogo de Adão e Eva”, repete as palavras “Brás Cubas” e “Virgília” várias vezes, de modo dançante, no espaço de linhas inteiras apenas pontilhadas, e o capítulo CXXXIX, “De como não fui ministro d’Estado”, vem todo ele sem palavra alguma, com todas as linhas pontilhadas.
Na década de 1940, ao expor seus quadros em Nova York, como o famoso Broadway Boogie-Woogie, Mondrian comentou a natureza da sua nova estética: “A emoção do belo é sempre obscurecida pela presença do objeto. Por isso, o objeto deve ser eliminado da pintura”.
Machado poderia muito bem ter dito a mesma coisa, trocando “objeto” por “palavras no papel”, deixando texto só no título. A sequência de pontos, mais pontos, menos pontos, uma fileira maior de pontos, ditaria o ritmo e o significado. Mas o que já era espantoso seria radical demais, é verdade, a ponto de fazer desaparecer o texto, e não haver mais literatura, só artes visuais.
Na literatura brasileira do século XIX, que foi de domínio machadiano, ninguém criou recursos gráficos no texto com essa radicalidade de Machado de Assis.
No conto A Obra-Prima Ignorada (1831), Honoré de Balzac havia feito algo semelhante numa dedicatória, que diz (ou não diz) o seguinte: “A um lorde, 1845”, e embaixo, quatro linhas pontilhadas, e nenhuma palavra. Neste caso, Machado foi além, criando um capítulo incógnito, pondo pilhéria no corpo do texto, no objeto mesmo de sua arte.
A experiência e o tempo
Para esgotar o assunto das metomínias, num outro romance do Bruxo do Cosme Velho, temos mais exemplos semelhantes. Vou citar apenas um, o da abertura:
“Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.” Este pequeno gancho nos conecta com Dom Casmurro, a narrativa que melhor comunica Machado com Proust.
Em alguns momentos, os autores parecem ter entrado num transe temporal, a ponto de perguntarmos como é possível tamanha semelhança entre dois criadores que não se leram (a resposta é Shakespeare como navio do tempo, obviamente).
Sabemos que não se leram porque Proust não falava nenhuma língua estrangeira, mal lia inglês (apesar de auxiliado pelos amigos ter vertido para o francês As Pedras de Veneza, de John Ruskin, que ele amava), e Machado não havia ainda sido traduzido para a língua de Molière, tendo morrido antes da publicação da ficção de Proust, que se iniciou em 1913.
O ponto de encontro entre os dois é o tema do ciúme. Publicado em 1899, sétimo romance de Machado, Dom Casmurro (184 páginas) é a narração do drama de Bento Santiago (Bentinho) sobre seu amor de infância por Capitolina (Capitu) e sua amizade por Ezequiel Escobar, numa vida plena dentro da sociedade carioca da segunda metade do século 19.
A narração é feita pelo próprio Dom Casmuro, Bentinho na solidão da velhice, olhando para si mesmo enquanto expõe seu ponto de vista (revestido de um sutil traço de tragédia) sobre como seu amor nasceu, desabrochou e morreu, entrelaçado à amizade de Escobar, acusado de ser o terceiro lado de um suposto triângulo amoroso.
E, assim, Machado explora o tema do ciúme, plasmando no texto, arrastando para a estampa verbal, o cerne do estrato social de seu tempo. O que se destaca nessa narrativa brilhante são os relevos da alma humana. O que se vê da intrincada relação social é iluminado de dentro para fora de Dom Casmurro.
Mas, aqui, o que interessa contar sobre essa trama é apenas o que há de comum entre Machado e Proust. Em Busca do Tempo Perdido, o romance-rio do autor francês, é mais amplo. São 2.800 páginas que, dependendo da editora, vêm distribuídas em três ou sete volumes.
No caso da Editora Globo, são sete volumes publicados pela primeira vez entre os anos 1940 e 1950, com a tradução de gente muito importante: Mário Quintana (os quatro primeiros), Manuel Bandeira (quinto), Carlos Drummond de Andrade (sexto) e Lúcia Miguel Pereira (sétimo).
É uma narrativa tão extensa, tecida num processo de construção tão laborioso que sua publicação original começou em 1913 e só terminaria em 1927, cinco anos após a morte do autor. Em Busca do Tempo Perdido é narrado na primeira pessoa por Marcel, e destrincha inúmeros fios que vão alinhavando sensações, sentimentos, experiências e amadurecimento do personagem central, na companhia de um inumerável séquito de pessoas que vão surgindo ao longo do caminho.
Numa vibe de frases centopeicas, quase sem fim, ditadas em ritmo marcado pela tensão dramática e pela musicalidade, pela capacidade de arrastar um sem número de imagens que vão dançando no espaço da narrativa e criando mundos, e recriando perspectivas, levantando questionamentos estéticos, políticos, históricos, sociais, filosóficos, a obra de Proust dá ao mundo uma chave nova para a interpretação da modernidade. Aliás, ela é a modernidade iluminando tudo.
Não vou fazer comentários sinópticos de cada volume. Seria uma tarefa exaustiva e inútil. No Caminho de Swann é o volume que abre os trabalhos e, de quebra, sugere que a leitura seja feita como quem entra num bosque espesso, de fauna e flora riquíssimas, em que o leitor deverá ir marcando o caminho, caso se perca, e se perderá, e quando se achar de novo terá muito o que dizer.
Neste volume, Marcel penetra na memória da infância, na cidadezinha de Combray (Illiers), nos anos 1870, e começa o processo de sua educação sentimental, padecendo de frágil saúde, falando da relação com os pais, sobretudo com a mãe e de seu amor incondicional por ela, às raias da tirania, fonte inconsciente de seus desejos e de seu ciúme.
E fala também das demais figuras de afeto no seio familiar, como a avó e a empregada da casa, Françoise, além da relação com o outro lado, é claro, o lado dos Swann: Charles Swann, Odette de Crecy e Gilberte, a primeira paixão de Marcel (fora de casa).
No segundo volume, À Sombra das Raparigas em Flor, Marcel já está na adolescência e começa a desabrochar sua sexualidade, mirando as moças da riviera francesa de Balbec (Cabourg), onde sempre ia passar as férias com a avó, hospedando-se no Grande Hotel.
Lá, ele se depara com um grupo de garotas, em que se destaca Andrée, mas quem cairá em sua teia de sedução será Albertine, que, após alguns anos de desencontros, será personagem central dos volumes A Prisioneira (quinto) e A Fugitiva (sexto).
Campo de forças
A Prisioneira é nosso fulcro, mas, antes deste volume, há ainda O Caminho de Guermantes, com Marcel já em Paris (vivendo de renda, como Frédéric Moreau e Brás Cubas), frequentando as altas rodas da sociedade, e Sodoma e Gomorra, em que a narrativa problematiza a questão da homossexualidade e do poder. E por fim, O Tempo Redescoberto (sétimo volume), em que tudo está destroçado pela Primeira Guerra Mundial, e a realidade já não parece mais juntar seus cacos para criar alguma unidade perene.
Neste último volume, Marcel debruça-se mais sobre o fenômeno do tempo e sugere que a realidade é feita de fragmentos que só podem ser juntados pela memória. “É a cadeia de todas as impressões inexatas, onde nada resta do que realmente sentimos, que constitui para nós nosso pensamento, nossa vida, a realidade.”
A realidade, portanto, é um fenômeno que está sempre no passado e, para ter acesso a ela mais integramente, é preciso recuperar o tempo, numa delicada operação que não está sob domínio do sujeito, porque requer a participação da memória involuntária (esta que hoje chamamos de gatilho, acionada por algo que nos ocorre – por meio de um cheiro, um sabor, um toque, um som – em nossos sentidos).
Um dos exemplos mais poderosos desta recuperação está descrito no primeiro volume – embora ele ocorra na vida adulta de Marcel – no momento em que Marcel molha a bolacha madalena no chá e a saboreia.
O sabor o faz recuperar tanta coisa e o leva a começar a se descobrir como escritor que vai narrar toda a história presente no romance. “Levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim.”
Além de icônico, fio condutor da narrativa, o trecho da madalena é famoso. Segundo Edmund White, em sua minibiografia intitulada Marcel Proust, “os esnobes gostam de salientar que, se Proust fosse mais bem-educado e não costumasse molhar o bolinho no chá, a literatura do mundo seria mais pobre”.
Nas últimas páginas do sétimo volume, Marcel comenta: “Era essa noção do tempo incorporado, dos anos escoados porém inseparáveis de nós, que eu tencionava fazer ressaltar em minha obra” (tudo isso no plano da ficção, porque, na realidade, o romance é fruto de um imenso projeto espelhado na sistematização criada por Flaubert e seus pares).
Em Busca do Tempo Perdido abrange um tempo considerável, pois pega dos anos 1870, recua em muitos momentos para a primeira metade do século XIX, em pinceladas históricas, e avança até a segunda década do século seguinte.
Segundo Walter Benjamin, em Magia e Técnica, Arte e Política, “somente Proust fez do século XIX um século para memorialistas. O que era antes dele uma simples época, desprovida de tensões, converteu-se num campo de forças, no qual surgiram as mais variadas correntes, representadas por autores subsequentes”. O conteúdo contempla o passado (vem arrastando 100 anos com a tarrafa jogada no rio do tempo), e a forma se projeta para o futuro.
A exploração do espaço subjetivo, ou seja, a paisagem interna dos personagens, dá ao romance uma dimensão ainda mais ampla. Em A Prisioneira, Marcel convence Albertine a morar em seu apartamento, em Paris, e aí começa o jogo de “aprisionamento” da amada.
Marcel chama de prisioneira a mulher casada, porque já não tem mais a liberdade de ir para onde quiser sem o consentimento do marido. Nem mesmo a manifestação de seus desejos e sentimentos são livres.
Se ainda hoje é assim, menos pela dependência financeira e pela autoridade patriarcal do que pela exigência da monogamia, pelo machismo e pela permissividade do amor, imagine na virada do século XIX para o XX.
Marcel e Bentinho
Num dos trechos de A Prisioneira, quando Albertine finalmente está morando com Marcel, este comenta: “O meu prazer de ter Albertine morando em minha casa era muito menos um prazer positivo do que o de ter retirado do mundo, onde cada um poderia gozá-la por seu turno, a menina em flor que se, pelo menos, não me dava grande alegria, não a dava tampouco aos outros. […]. Para mim, amar carnalmente significava triunfar sobre numerosos concorrentes”.
Em Dom Casmurro, há uma correlação dessa ideia de Marcel, bem antes de Bentinho estabelecer de fato uma relação de predador com Capitu, quando ele diz: “Capitu gostava de rir e divertir-se e, nos primeiros tempos, quando íamos a passeios ou espetáculos, era como um pássaro que saísse da gaiola”.
Bentinho já tinha sentido ciúme de Capitu na época de namoro, como quando um homem montado num cavalo baio passou olhando para Capitu até torcer o pescoço, e Capitu retribuiu a gentileza do olhar, porque, segundo o próprio Dom Casmurro, ela gostava de ser olhada.
Mas, após o casamento, o primeiro lance de ciúme de Bentinho foi em saraus, ciúme dos olhares dos homens para os braços de Capitu e, pasmem, das mangas da blusa tocando a pele dos braços nus. Depois foi com o mar.
Capitu e Bentinho moravam na Glória, com vista privilegiada, e quando não saíam para algum compromisso social ou cultural, passavam as noites à “janela da Glória, mirando o mar e o Céu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia”.
Até que uma noite, diz Dom Casmurro, Capitu “perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes”. Obviamente, o ciúme aqui é pelo que se passa na cabeça dela, na qual nem Bentinho nem pessoa alguma têm condições de penetrar, mergulhando-o num oceano de incertezas.
Passou a ter ciúmes “de tudo e de todos”, antes de focar no amigo Escobar. Veja que nessa matéria de ciúme, Bentinho parte do particular (olhares para o braço de Capitu) ao geral (“ciúme de tudo e de todos”), depois do geral ao particular (Escobar), como se em Escobar encerrassem todos os homens e, em Capitu, todas as mulheres.
O ciúme pegou mesmo quando ele começou a notar semelhanças de Escobar no filho, que imitava os gestos do amigo do pai (um jeito nos pés e nos olhos e “o modo de voltar a cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair, quando ria”). O filho de Bentinho se chamava Ezequiel, em homenagem ao amigo de mesmo prenome, cuja filha se chamava Capitolina, em homenagem a Capitu.
A mãe de Bentinho (que também era viúva, com a de Frédéric Moreau) começou a minguar as visitas ao neto; o agregado da família, José Dias, chamou o menino de profetazinho, o filho do homem, e Capitu não gostou de ouvir isso; a amiga de Capitu, Sancha, casada com Escobar, disse que as crianças Capitolina e Ezequiel se davam tão bem que começavam a se parecer um com o outro. Ou seja, sinais fragmentados que passaram a inflamar as suspeitas e a acentuar seu grau de neurose.
Muita água rola debaixo da ponte, enquanto Bentinho vai levantando suspeitas de Capitu. “Continuei a ter ciúme a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava”, diz Dom, em sua narrativa confessional na velhice solitária.
Ele sabia muito bem como funcionava o gatilho do ciúme. “A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros que recordem e se deleitem com a imaginação deles.”
Marcel também sabia disso e burilou frases que podem ser estudadas até hoje num divã sobre o assunto. “Quando saía com Albertine, por um instante que ela ficasse sem mim, eu me tornava inquieto, imaginava que talvez ela tivesse falado com alguém ou pelo menos olhado para alguém.”
“O ciumento não hesita em formar ele mesmo suspeitas atrozes a propósito de fatos inocentes, com a condição de se negar à evidência diante da primeira prova que lhe trazem”, disse Marcel. “O ciúme nada mais é muitas vezes do que uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas do amor.”
Se há essas e outras semelhanças na operação mental de ambos os narradores, também há diferenças. Por exemplo, Albertine é feia e gorda, aos olhos de Marcel, mas é assim mesmo que ele gosta, a ponto de proferir outra frase proustiana muito famosa: “Deixemos as mulheres bonitas aos homens sem imaginação”.
Já Capitu, segundo a descrição de Dom Casmurro, era bonita, dona de si, vaidosa, risonha, delicada e atenciosa, possuidora de uma graça capaz de alegrar qualquer ambiente. E ele foi minando a fortaleza da alma dela até que a isolou do mundo, levando-a para a Suíça, onde morreu e foi enterrada.
Ostracismo extremo
Isso mesmo, caro leitor deste pobre texto. Quando Dom narra sua história, não há um corpo vivo que ocupou o espaço de sua narrativa, além do dele (e talvez de Sancha). Não posso segurar um spoiler de mais de 100 anos. E Albertine também está morta. Não se ilude. Caiu do cavalo, literalmente, contra uma árvore. Por isso, ambos os narradores giram em si mesmos, presos numa certa ideia que os atormenta.
Albertine ainda conseguira escapar das garras de Marcel, antes de morrer, e ele explica com clareza esse movimento. “Toda mulher sente que, se for grande o seu poder sobre um homem, o único meio de ir-se embora é fugir. Fugitiva por ser rainha.”
A Capitu não foi dado esse tempo de compreensão. Bentinho foi mais rápido, destronou-a e a levou para o exílio, para morrer no isolamento de uma terra estrangeira, e nem ficamos sabendo a causa da morte.
De volta às semelhanças, leia o trecho a seguir e, à medida que for lendo, vá pensando que personagem o escreveu:
“Interminável é assim o ciúme, pois mesmo se o ente amado, tendo morrido por exemplo, não o pode mais provocar pelos seus atos, acontece que reminiscências posteriores a qualquer fato se comportam de repente em nossa memória como outros tantos fatos, reminiscências que não havíamos esclarecido até então, que nos tinham parecido insignificantes e às quais basta que reflitamos sobre elas, sem nenhum evento exterior, para lhes darmos um sentido novo e terrível. Não é preciso sermos dois, basta estarmos só no quarto, a pensar, para que novas traições de nossa amante aconteçam, embora ela esteja morta.”
Assim falou Marcel, em A Prisioneira. Em Dom Casmurro, há uma frase sintetizadora disso tudo, como senhor absoluto da capacidade de síntese que sempre fora Machado de Assis: “Nem os mortos escapam aos seus ciúmes”, disse Capitu para Bentinho, numa discussão sobre Ezequiel ser ou não filho de Escobar, após este já ter morrido. Mas a observação vale para ela também, porque afinal tudo é uma recuperação de um tempo perdido, e Capitu já estava morta neste momento (apenas não sabíamos ainda).
Escobar morrera afogado, ao nadar na Praia do Flamengo, coisa que ele sempre fazia. E o mar, mais uma vez, atravessa os sentimentos de Bentinho, porque, no velório, Capitu “olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa”, semelhante ao modo que fizera ao contemplar o mar, justo ela que tinha “olhos de ressaca”.
Em seguida, Dom Casmurro diz: “Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”.
Dois casmurros
São muitas semelhanças entre o romance de Machado e este específico volume da obra de Proust, A Prisioneira. Há uma série de outras comparações que não cabem aqui, que também entram no plano das teorias estéticas. Cito apenas uma curiosidade entre o título machadiano, e tudo que o cerca, e uma definição imposta a Marcel, no tomo No Caminho de Swann.
Talvez seja em função da tradução de Mário Quintana, poeta, leitor de Machado, mas o fato é que Marcel declinava de um convite para ir à casa dos Guermantes, e “muita gente interveio, dizendo que eu fazia mal em não ir a Guermantes, dava assim a impressão de um casmurro”.
É bom lembrar que o velho narrador, Dom Casmurro, explica a alcunha ainda no primeiro capítulo, ao falar do título, dizendo que recusou a ler o poema de um conhecido e este passou a chamá-lo assim.
No entanto, “não consultes dicionários”, diz. “Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.” Ou seja, o velho Bento Santiago é um homem que olha para dentro de si mesmo; o que ele vê é sua própria alma, e não a exterioridade das coisas.
Essa imagem dialoga com o que Marcel, mui sabiamente, viria a dizer em A Prisioneira: “O homem é a criatura que não pode sair de si, que só conhece os outros em si, e, dizendo o contrário, mente”.
Estrelas acesas
No momento da narração, Dom Casmurro vive só. Tudo que ele está dizendo é uma recuperação do passado, e não há nenhuma interlocução contemporânea, na narrativa, a não ser a mera citação do criado na abertura, com quem ele vive, no ostracismo de Engenho Novo.
Quando ele constrói sua história sobre a relação triangular de amor com Capitu, de amizade com Escobar e do suposto amor pérfido entre a mulher e o amigo, o que ele está fazendo, a operação mental que empreende, não deixa de ser uma procura pelo tempo perdido.
Uma bela metáfora de Dom Casmurro sintetiza bem esta busca pelo passado, além de uma profecia machadiana sobre como leríamos sua obra. Bentinho e Capitu se casaram numa tarde de março de 1865. Chovia. “Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos”, diz Dom, “o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas daqui a muitos séculos.”.
Toda memória é uma caixa de tempo, e quando a evocamos, obviamente, recuperamos esse tempo. No caso de Bentinho e de Marcel, o que eles recuperam à medida que vão cavando a mina da memória é um tempo que, mais do que guardado, estava perdido nesse espaço, e que revela a realidade das coisas, ou melhor, realiza as coisas postas na realidade de maneira mais ampla e cheia de nuanças e detalhes.
Trata-se, neste caso, de uma realidade inundada de infinitos significados que se desdobram no espaço e no tempo, ou seja, uma hiper-realidade, termo este que só seria criado dezenas de anos mais tarde, e que está mais atual do que nunca, porque, hoje, os detalhes se acumulam e transferem significados simultaneamente.
E tudo isso sobre dois homens que confessam, ironicamente, que não conseguem se lembrar muito bem das coisas. “Você sabe que eu não tenho a faculdade de me lembrar por muito tempo”, diz Marcel a Albertine.
Já Dom Casmurro diz “não, não, a minha memória não é boa”, mesmo que, ao narrar suas confissões na velhice, se lembre em detalhes de um sonho da adolescência. Mais adiante, repete: “Agora que contei um pecado, diria com muito gosto alguma bela ação contemporânea, se me lembrasse, mas não me lembra”.
Ou seja, lembra o que quer, e pode estar misturando lembranças a criações imaginárias. Afinal, na época dos acontecimentos, sua imaginação era o que ele tinha de mais fértil, conforme ele mesmo diz: “Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento. (…) A minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre”.
Há poucas opiniões de Capitu sobre Bentinho, e quando ela fala dele, é com palavras do próprio Dom Casmurro, que é quem está narrando, e ela o chama de medroso e mentiroso, num gesto armado pelo afeto. É um modo carinhoso de acusações nesses momentos de jogo de namorados, mas são palavras que compõem de certo modo os traços de personalidade do narrador.
O tema do ciúme, tal como foi elaborado em Machado e Proust, é influência direta do Otelo e do Conto de Inverno, de Shakespere. Mas a lição de criadores modernos que os dois receberam de Flaubert, eles a realizaram direitinho. Flaubert, que na própria casa era chamado de idiota da família, ficaria orgulhoso.