[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
Queremos neste ensaio discutir o problema da pluralidade histórica e dos sistemas de valor na perspectiva historicista, partindo das contribuições dos filósofos Edmund Husserl (1859-1938) e Karl Popper (1902-1994), bem como da compreensão oriunda do próprio campo da história acerca do tema.
De acordo com Husserl, o historicismo é para as “ciências do espírito” o que o naturalismo é para as ciências naturais e, em ambos os casos, sua consequência é o relativismo epistemológico. Para o filósofo, o relativismo não tem rigor epistemológico. Nesse sentido, podemos até associá-lo a Karl Popper (1902-94), outro filósofo que combatia o ceticismo, o convencionalismo e também o relativismo na ciência, doutrina que se ampara na crença da impossibilidade da razão e da discussão racional e que, do ponto de vista político, pode ser considerada intolerante e antidemocrática, em uma palavra, irracionalismo.
Sendo uma das principais ideologias do início do século XX, o historicismo se amparou epistemologicamente nos mesmos moldes do naturalismo e não permitiu a reorientação científica da filosofia, como pretendia Husserl. A concepção historicista do mundo é, consequentemente, incompatível com a ideia de uma “filosofia como ciência rigorosa”. No entanto, como todo fenômeno, a história é uma reunião de intenções da consciência do sujeito, e o historiador, portanto, pode pressupor a relativização de determinado valor, mas não pode causar a relativização no objeto que estuda. Isto é, a relatividade está no homem, não na pluralidade da história.
Uma coisa será o uso da história da filosofia pelo filósofo, uso nem sempre circunspecto e respeitoso dos fatos, como no caso de Hegel. Outra coisa será o uso da história da filosofia pelos historiadores, com menos liberdade do que os filósofos e com mais disposição de seguir fielmente o curso dos acontecimentos, esmiuçando os fatos até o mais ínfimo detalhe, com destemor e sentido de dever – mesmo que o exame da história da filosofia leve ao desmentido do filósofo e destrua a originalidade da obra (Domingues, 2009, p. 77).
É em um quadro supostamente a-histórico em que se configura o espaço lógico dos problemas filosóficos, no qual encontramos o exame dos contextos históricos, sempre plurais, “livre” da subserviência de um método historiográfico, o que, por vezes, faz o filósofo pensar erroneamente no historiador como mero “realizador cultural”. Seja como for, o relativismo histórico molda o historicismo e, no entanto, na ciência histórica, somos prevenidos a atentarmo-nos, detalhadamente, tanto aos grandes contextos como aos pequenos fatos. O contexto é importante, assim como os fatos, contudo, absolutizá-los, como faz o historicismo, é aprisionar-se em meio às determinações que criamos para nós mesmos. Entender que relativizar a singularidade preserva a diferença é o mesmo que camuflar o caráter isolante e segregacionista da análise baseada somente em fatos.
Sem um contexto, o trabalho corre o risco de ficar sem sentido, e sem o detalhe, sem conteúdo. Por esta razão, há dois perigos. O primeiro é que, por causa das inúmeras árvores, não se veja mais a floresta; o segundo, que se imagine apenas uma floresta, sem saber, no final das contas, se nela há árvores – e que tipo de árvores (Scholtz, 2011, p. 45).
O historiador, então, ao se voltar às individualidades, encontra uma pluralidade de sistemas de valores e, de algum modo, suas descobertas correspondem ao excesso de subjetividade do sujeito, junto à época e ao tempo em questão, fazendo com que ele valorize a descoberta não com o valor dela mesma. Assim, se o sistema valorativo oferece algum parâmetro para a história, por meio do subjetivismo do contexto histórico, a crítica fenomenológica ao historicismo readmite a noção de objetividade na história e, por meio dela, revela que a pluralidade de valores do relativismo não precisa ser necessariamente relativista.
A ciência histórica oferece uma grande quantidade de saber factual, mas é incapaz de fornecer uma norma estável. Se, de um lado, o pluralismo neutraliza e intenciona evitar o sectarismo social, de outro, atua concomitantemente para a segregação. Por exemplo, o mundo tem diversas regionalizações a fim de facilitar a compreensão das partes específicas de um determinado espaço geográfico, consequentemente, a concessão da nacionalidade aos indivíduos os separa das outras várias existentes.
A crítica ao historicismo, tanto da história quanto da filosofia, e por extensão da história e da filosofia, significa pretender que a pluralidade de sistemas culturais díspares deveria equivaler a não ter qualquer sistema? Isto é, a multiplicidade cultural é necessariamente um obstáculo para uma concepção unitária e objetiva da história?
Talvez seja possível que, ao relativizar o próprio relativismo historicista, possamos discernir se as teorias sistemáticas não se deixam assimilar devidamente pela pluralidade histórica dos fenômenos. Isto é, que os sistemas de valor não se tangenciem justamente pela heterogeneidade dos contextos históricos, pois, enquanto este pluralismo parece levar a uma desorientação, ele também pode ser visto como uma condição de liberdade. Na concepção estruturalista, por exemplo, na qual a história tenta explicar a consciência coletiva em função de uma lógica mental “inconsciente”, que se expressa e se ajusta às estruturas universais implícitas, presumivelmente, a relativização dos valores é ambicionável.
A história é polifônica. O problema não é o pluralismo de tradições, tampouco a solução seria uma uniformidade impreterível. As pluralidades expressam, necessariamente, a manutenção de uma conjuntura exclusiva, mas essa separação que dignifica um sistema de valor é a mesma que contextualiza e marginaliza os demais cenários. A singularidade é importante na criação e manutenção de identidades e representações, porém, prisões mentais são criadas ao isolarmo-nos em determinações absolutas de contextos culturais. “O Historicismo (entendido como relativismo) é algo cuja superação ainda permanece na ordem do dia” (Schnädelbach, 1983, p. 52).
Recusar o relativismo não reafirma a ressignificação de um dogma, pelo contrário, conforme Popper (1996), assumir a possibilidade do entendimento mútuo entre contextos diferentes assegura a existência da vida civilizacional. Considerando que o relativismo defende a impossibilidade de um conhecimento vasto e vantajoso para diferentes contextos, é possível daí inferir também a defesa da impossibilidade da nossa sobrevivência. Em função disso, o relativismo, que justamente pretendeu atuar como um crítico radical ao grande dogma da “verdade absoluta”, acabou por se constituir em uma doutrina dogmática.
Nossa ideia central, portanto, não é fazer naufragar a existência de múltiplos sistemas de valores culturais concorrentes em prol da criação de uma unicidade dogmática, mas justamente fazer entender que as distinções destes múltiplos sistemas de valor nos fornece a possibilidade de aprender com a pluralidade histórica. Há de existir um meio-termo entre a cultura uniforme de massas e a relativização que o historicismo emprega, isolando os sujeitos em seus contextos históricos. Por meio de uma crítica mútua entre diferentes contextos, seria possível enxergar as árvores que compõem a floresta da mesma forma que a floresta sendo composta pelas árvores.
Referências
DOMINGUES, Ivan. O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea. Ed. Loyola, 2009. 2. ed. 2017. São Paulo, Brasil.
HUSSERL, Edmund. La filosofia como ciencia estricta. Ed. Prometeo Libros, 2013.
POPPER, Karl. O mito do contexto. In: O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Trad. Paula Taipas. 1ª Ed. Lisboa: Edições 70, 1996. pp. 55-67.
SCHOLTZ, Gunter. The problem of historicism and the human sciences in the 20th Century. Archiv für Kulturgeschichte, n. 71, 1989. p.463-486. SCHNÄDELBACH, Herbert. Philosophie in Deutschland 1831-1933. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983
[1] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O texto é o 11º da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo Moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
- Rap: Crítica e Resistência, de Thalyne Barros Soares e Isabella Krein Soares, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/.
- Reflexões sobre a Prática Filosófica no Brasil, de Silas Miqueias da Silva, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/13/reflexoes-sobre-a-pratica-filosofica-no-brasil/.
- Diálogos Atemporais, de Augusto Henrique Gamarra de Souza, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/20/dialogos-atemporais/.