[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
negra
o que acontece quando temos que tomar o incenso de anis e respirar
com as pupilas aguadas? aquilo que tu olhas não te vê,
só o pulmão pressente a luz que respiras. afogada, so what?,
no quarto, pelo jazz de miles davis, escuto, com
uma flor no fundo da cabeça, a matéria radiosa de sua agonia.
uma flor no fundo da cabeça a celebrar a altura do sax.
uma flor no fundo da cabeça a engolir a água profunda.
tanta sombra a recalcitrar cool
a
brisa deitada pela noite
ininterrupta
negra
negra
negra
***
[2]
mais e outra vez
não fui feita para ter a felicidade fugaz dos objetos.
diante de inesperadas horas,
e sem relação com o furor da tempestade, é que me aquieto,
com um gosto de avis rara na boca,
que não serve para sacudir as palavras, nem arrastá-las.
não fui feita para a covardia das entrelinhas azuis.
não armo escândalos, não peço que me tolerem,
movida pelas palavras efêmeras:
não me peçam para contemplar as coisas que abismam,
não me borrifo mais com uma só saída
e só fico a amansar poemas.
mas, se na noite escura,
o som dos fogos perturbar minha razão de escrever,
serei, por razões imanentes, a flor púrpura do cairo que,
em inesperada hora, com o sussurro dos mariscos,
sacudirá o ar de tua boca.
***
[3]
la vida es un sueño?
se um unicórnio entrasse agora aqui eu não teria medo,
eu gritaria como cantora de ópera-bufa,
visionária,
a se contaminar com seus agudos sopranos.
e se no mezanino eu encontrasse o tigre de borges?
eu subiria escadas, com vigor de quem vela a pele dos abismos,
a sorver espasmos babilônicos.
e, se nesse encontro, o sonhado me dissesse:
desperta!
eu lhe diria, baixinho: silêncio, isto é um sonho.
***
[4]
ele, o céu e eu
na noite de gelo óxido, o inverno arde azul.
suas mãos se animam e os dedos ávidos agarram pelos cabelos
a visão mais simples.
o rosto, feito abajur âmbar,
brilha ao devorar as palavras
de trás para frente e por todos os lados.
eu nunca havia lido algo que ele tivesse escrito,
porque passei os últimos anos lendo sylvia plath,
comendo tangerina e ouvindo jazz.
até então, o real miúdo do aqui e agora
para mim soava feito cálamo.
impelida, abri o livro dele de maneira aleatória e li:
“céu, nada mais que um sinal, cai na pérola sem a destroçar”.
a chama, como átomo, naquela hora dançou em ti.
a língua da salamandra era um pingente de fogo.
***
[5]
ventura
a palavra jorra,
língua de chuva que se curva em gesto.
xis, que escuto e que brilha em cruz
no espaço das coisas sob mim.
caeté de sombra, desgarrada, xodó
daquele que faz de minha fonte
uma raiz, uma flor de jade.
Perfil
Fátima Pinheiro é gaúcha e vive no Rio de Janeiro. É autora do livro sim, é (Blanche/PR), lançado em 2020, do qual foram selecionados os poemas desta coluna. Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, coordena na EBP – Seção/Rio o Seminário “Sinthoma e Corpo: variações e invenções”. É doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com a tese O saber do artista e a prática da letra, defendida em 2014. Formada pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage/RJ (1998-2005), recebeu o Prêmio Universidade Estácio de Sá – Universidarte/ 2001. De 2012 a 2019, foi responsável pela coluna In Situ, de ensaios e entrevistas, no blog da Subversos Editora/RJ. Escreveu artigos e ensaios em revistas no Brasil e no exterior. Tem poemas publicados na Zunái (2020), Mallarmagens – revista de poesia & arte contemporânea (2019) e Macabéa Edições (2020). Seu texto “Flor d’água” está na coletânea do livro Feminino Manifesto, da Nau editora (no prelo).
Leia ensaio sobre sim, é, livro de estreia da autora, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/07/o-sopro-do-koan-na-escritura-de-fatima-pinheiro/.