Se os homens tivessem regras, a literatura universal estaria cheia de metáforas de sangue. (Rosa Monteiro)
Exiladas: s/adj.fem.pl (étimo, mulheres quebradas) 1. Às vezes é difícil definir a diferença entre exílio forçado e livre escolha. 2. Cf. O Buda no Sótão (2011, com tradução de Lílian Jenkino para o Brasil em 2014), da autora nipo-americana Julie Otsuka, narra em tom menor, diferentemente do tom épico das grandes narrativas imperialistas, a viagem de migração e o estabelecimento de um grupo de mulheres japonesas nos Estados Unidos no começo dos 1900. “No navio éramos quase todas virgens. Tínhamos os cabelos negros e longos e os pés chatos e largos, e também não éramos muito altas.” As primeiras frases marcam duas características da narração: 2.1 a voz na primeira pessoa do plural, um desafio narrativo levado a cabo com lirismo, abre espaço para que o texto seja um inventário dos destinos dessas mulheres que fugiam de uma vida pouco promissora em sua terra natal (“Você quer passar o resto da vida agachada em uma plantação?”); 2.2 a experiência do corpo como vínculo tangível com o mundo, com dois mundos, o de casa e o estranho, dois mundos estranhamente misturados em um só, já que na Califórnia as esperavam maridos japoneses, colonos explorados e estupradores em potencial, que nunca tinham visto. “Eles nos possuíram com as costas nuas no chão do Motel Minute. Nos possuíram no centro, nos quartos de segunda categoria da Hospedagem Kumamoto. Eles nos possuíram nos melhores hotéis de San Francisco em que era permitido a um homem amarelo colocar os pés naquela época. No Hotel Kinokuniya. No Mikado. No Hotel Ogawa. Eles nos possuíram como se nos merecessem e presumiram que faríamos por eles o que quer que fosse dito. Por favor, vire para a parede e se apoie sobre as mãos e os joelhos”. 3. Sinfonia de vozes que consegue recriar a experiência coletiva da viagem, da violência do encontro com o suposto conhecido, e do espelho distorcido, caricatural, que o país “anfitrião” oferecia. “Tínhamos todas as virtudes dos chineses – trabalhávamos duro, éramos pacientes e de uma educação infalível – e nenhum dos vícios deles – não apostávamos nem fumávamos ópio, não fazíamos barulho, não tínhamos o hábito de cuspir. Éramos mais rápidas que os filipinos e menos arrogantes que os hindus. Tínhamos maior disciplina que os coreanos. Éramos mais sóbrias que os mexicanos.” “Um japonês consegue viver com apenas uma colher de chá de arroz por dia.” 4. O fim dessa viagem é a morte simbólica e física da diferença.
“Devemos chamar o estupro de ato de violência, um ato sangrento, de parar o coração, tirar o fôlego e quebrar os ossos, que é o que ele é na verdade.” Maya Angelou (Carta a Minha Filha, 2019. Trad. Cecília Portocarrero)
Exiladas: s/adj.fem.pl (étimo, mulheres quebradas). Por derivação. Sentido figurado. Isolamento do convívio social; solidão. 1. Aqui a livre escolha do corpo feminino não leva a outro país, outra língua, senão àquela que precisa ser inventada para exilar-se do mundo cotidiano e familiar num lugar de autoconhecimento. 2. O exílio como solidão pode ter vários casos exemplares (Rousseau, Rimbaud, Bolaño, Cioran). 3. Mas talvez poucos tenham escolhido a solidão de exilado com a pretensão de alcançar apenas o inumano como G.H. (“o mundo havia reivindicado a sua própria realidade”) – a inventora de uma língua que não busca a comunicação (“a verdade que não se transmite”). 4. Finalidade sem fim. 5. G.H. tinha pressa de viver sem fatos (“vivera muito, quero dizer, vivera muitos fatos. Quem sabe eu tive de algum modo pressa de viver logo tudo o que eu tivesse a viver para que me sobrasse tempo de… viver sem fatos? De viver”). Por isso inventou a língua que tornasse narrável (o que não significa compreensível no seu sentido último) a longa viagem em direção ao quarto minúsculo onde encontraria a barata – a última passagem viva, úmida e estreita para o exílio de si (“eu me havia esgueirado através daquele corpo de cascas e lama”). 6. A experiência radical da solidão levou-a para fora do eu vivido e paradoxalmente inseriu-a em um espaço alhures conhecido (“eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo”). 7. Inventou, pois, a língua que tornasse possível a narração da última ou da primeira viagem (“Não se parecia com a solidão de uma pessoa. Era como se eu já tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida”). 8. Nessa viagem, o leitor segue sem bússola, sem dicionário bilíngue, sem enredo para exercitar sua hermenêutica (“Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa, pois enfim a vejo fora de mim”). 9. Se todo exilado volta, escreve, cria uma situação para contar sua história, G.H., ao contrário, oferece algo que é pura narração, pois todo enredo nos coloca sob o risco da distração (“O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas”). 10. Saber significa ter gosto, gosto de massa branca de barata, não de conhecimento e informação (“O que vi não é organizável”).