[Coautores: Rafael Lopes Batista [1] e Weiny César Freitas Pinto[2]]
As reflexões deste ensaio são o esboço de um problema que persistentemente aparece de diversas formas na grande História da Filosofia, a saber: a relação epistemológica entre pensamento e linguagem e o papel dessa relação na constituição da subjetividade humana. Por enquanto, não se trata de explicar ou propor respostas ao problema, de acordo com determinado filósofo ou corrente filosófica, por isso, tomamos aqui a liberdade de apenas expor algumas formulações, bastantes vagas, para algo que pode, no futuro, se tornar uma contribuição filosófica mais sistematizada.
- Percepção, pensamento e razão
Não julgamos percepção, pensamento e razão como sendo faculdades iguais, como se fossem uma e a mesma coisa. Concebemos que estes elementos têm diferentes significados e objetivos no desenvolvimento da cultura humana. Cada percepção sensorial que vivenciamos gera uma experiência que guardamos em nossa memória e que cria e consolida conceitos que remetem a essas percepções. Dessa forma, conceitos como “molhado”, “fresco”, “gostoso”, “transparente”, etc., nos remetem a percepções apreendidas de situações que já experimentamos, por meio das quais operamos a ação de pensar. Consideramos que, em condições normais de saúde e plenamente desenvolvida no que diz respeito à sua integridade cognitiva, a capacidade de pensar é inata a todo ser humano, configurando-se como uma qualidade que pode ser desenvolvida de forma mais ou menos elaborada e coerente com certos parâmetros, por exemplo, a razão. A razão é o que concatena os conceitos por meio de uma certa lógica que, como tal, busca um encadeamento de causas, consequências, confirmação ou negação deles.
Estudos de anatomia humana (Alves, Tubino et al., 2016) mostram que os sentidos se desenvolvem cedo, ainda no útero, e que o primeiro sentido a se desenvolver em um feto é o tato, isso a partir já da quinta ou sexta semanas de gestação, quando o líquido amniótico começa a ser percebido nas regiões dos lábios e do nariz. Tais percepções criam referências para cada nova experiência e, dessa forma, se começam a criar registros dessas referências, que serão base para a atividade de comparação. De maneira incipiente, a faculdade de comparar irá identificar como igual, similar ou diferente cada nova percepção de um novo evento, processando as sensações daí extraídas e revisitando as experiências registradas. Este processo, que se fará cada vez mais presente devido ao desenvolvimento e ao aprimoramento dos outros sentidos, permite que as atividades cognitivas do bebê deem seus primeiros passos em direção à ação de pensar, pois aqui começam as percepções e comparações de um mesmo evento por diferentes sentidos e a consolidação dos primeiros conceitos. Assim, se com uma quantidade maior de estímulos às percepções iniciais, temos um melhor desenvolvimento cognitivo, decorrente das acomodações delas, parece-nos plausível concluir que a base para o pensamento é a memória e que, por sua vez, a memória apoia-se na percepção, tanto do exterior, de espaços, objetos e demais fenômenos aos quais temos acesso quanto do interior, de sentimentos e sensações. Este é o primeiro ponto que gostaríamos de destacar: pensar é perceber e perceber é comparar. A primeira ação do indivíduo rumo à atividade de pensar é a percepção, que leva à memória, a qual, por sua vez, é onde as percepções se acomodam. Perceber é uma ação já dotada de estrutura conceitual, da qual resulta a faculdade de comparar, que também recorre à memória para classificar a percepção como inédita ou repetitiva, diferente ou similar.
Em nossa cultura ocidental e eurocêntrica, predomina a ideia de que o pensamento racional é o que de mais complexo e vantajoso produzimos. Entende-se, em geral, que a racionalidade é o melhor fruto que podemos extrair da mente, por meio do nosso condicionamento sociocultural e epistemológico. Nem sempre nos damos conta, portanto, de que nossa ideia de racionalidade isola o pensamento de outras dimensões importantes. A percepção emocional ou espiritual, por exemplo, é geralmente renegada, da mesma forma que também se crê com frequência que somente a razão nos permite apreender os padrões da natureza e da própria percepção sensorial, como se houvesse um determinante, uma espécie de estrutura mental racional universal, externa aos fenômenos empíricos. Assim, o processo de compreensão do que é percebido esvazia toda e qualquer perspectiva que não é racional, incorrendo assim em uma perda significativa da nossa capacidade de conhecer e de comunicar o que conhecemos.
Em outras palavras, o recorte racional do pensamento é um artifício didático, um constructo histórico perpetrado ao longo do desenvolvimento de nossa cultura e restrito a uma determinada visão de mundo. De modo similar, podemos exemplificar as disciplinas escolares como recortes didáticos. Por exemplo, ao estudarmos a água, do ponto de vista da física, aprendemos que ela apresenta propriedades térmicas, elétricas, magnéticas, fluidas, entre outras, que podem ser relacionadas entre si para explicar a sua ocorrência e a sua dinâmica na natureza. Contudo, esse ponto de vista é parcial, na medida em que é insuficiente para expressar a riqueza de significados da água na sua completude. Quer dizer, ao analisar a água, podemos optar por outras perspectivas igualmente fundamentais, abordando-a sob o viés de sua relação com a vida, com a saúde ou com o desenvolvimento das sociedades, por exemplo.
Em si mesma, a água não tem nenhum recorte físico, tal recorte é somente uma perspectiva epistemológica que imputamos a ela, isto é, a água, por si mesma, é apenas água. A necessidade de desvendá-la cientificamente é característica humana, ou seja, a água, ela mesma, não tem necessidade alguma de ser desvendada ou desvendar-se. Isso significa que, ao fazermos um recorte da realidade, sob a pretensão de que a realidade se enquadre como tal (é exatamente isso que faz o recorte racional), estamos ignorando outras abordagens possíveis, tão ricas e promissoras quanto a abordagem racional. Ora, a realidade não se esgota com a racionalidade.
Quando percebemos, percebemos de forma única e completa, conforme a nossa capacidade. Percebemos com a atenção que dispomos e só depois separamos a experiência em campos distintos, abordando-a dentro de um recorte racional, emocional ou espiritual[3]. Cada percepção de alguma coisa tem algo intimamente ligado ao indivíduo que a percebe, pois a experiência de perceber sempre é individual. Podemos, por exemplo, ter várias pessoas presenciando um mesmo evento: a água fervendo a 100°C. Se investigarmos o que foi percebido desse evento, encontraremos tantas versões quanto são os indivíduos que o presenciaram. Apesar de, sob certas circunstâncias, a água sempre ferver a 100°C, independente de qual indivíduo verifique isso, ainda assim podemos encontrar diferenças na percepção de cada sujeito, isto é, alguém pode se atentar mais às bolhas que se formam na parede interna do recipiente aquecido, outro pode se atentar mais ao som do processo etc. Desse modo, tem-se que, para cada pessoa, há uma percepção de cada coisa. E aqui começa a delinear-se a questão da comunicação
2. O problema de universalizar a comunicação das percepções
Sabemos que a comunicação é o modo pelo qual espera-se garantir que uma ideia seja expressa, assim como compreendida por quem a absorve, de modo mais fiel possível ao originalmente expresso. Nesse sentido, uma das dificuldades de projetar qualquer compreensão do mundo reside na questão de como comunicá-la. Ora, como manifestar, transmitir de maneira universalmente válida e efetiva, um determinado conhecimento ou visão de mundo?
Comecemos por apontar algumas etapas do processo de comunicação, imaginando que uma pessoa tenha tido um pensamento acerca de algumas percepções e que queira externá-lo a fim de investigar ou testar a sua validade. Para realizar essa tarefa, tal pessoa deverá atentar-se em compreendê-lo (o pensamento) em sua totalidade, ou seja, de uma maneira que ele faça sentido na medida em que encontre amparo nas relações factuais das quais emerge. Para comunicá-lo, essa pessoa deverá ainda converter esse pensamento em sentenças, de forma que estas sejam as mais fidedignas possíveis ao pensamento que lhe deu origem, de modo que não se incorra no erro de ter uma ideia e transmitir outra. Posteriormente, a pessoa deverá comunicar essa sentença, o que por si só já carrega muitos problemas, pois o sentido de uma palavra não se encontra somente na grafia ou na vocalização. Nesta etapa, encontramos problemas como os da tradução, do significado da palavra em si, para o autor, para o ouvinte etc.
Tendo sido bem-sucedido na etapa de formular as sentenças e na etapa da comunicação, é preciso, em terceiro lugar, que o ouvinte ou leitor, a depender da forma da transmissão, ao analisar a sentença, consiga reproduzir o pensamento comunicado, a ideia reproduzida precisa ser ao menos equivalente à ideia originalmente pensada.
Todavia, mesmo que todas as etapas tenham ocorrido de maneira exitosa, sempre estaremos a trabalhar no campo das aproximações, pois, em relação a um determinado conceito, para cada pessoa há uma percepção específica. Isso porque as memórias afetivas/racionais não só têm relação com a personalidade, mas com a forma de pensar e de se comunicar de cada indivíduo.
Nesse sentido, pensar é perceber, perceber é comparar. Tudo isso, graças à memória, que também é o que nos permite a ação de comunicar, isto é, associar, trocar palavras e conceitos, singularidades e vivências. Portanto, entendemos que a impressão e a apreensão dos fenômenos, assim como a articulação deles com outras percepções de outros eventos, são a matéria-prima para nossos pensamentos, pensamentos que são recortes ou perspectivas da realidade. Desse modo, a busca pela concordância entre pensamento e realidade pode acontecer ora sob o crivo da razão, ora não.
Referências
ALVES, Elaine Maria de oliveira; TUBINO, Paulo; TUBINO, Paulo Victor Alves. Órgãos dos Sentidos. Desenvolvimento Sensorial. In: Anatomia funcional aplicada, Gráfica e Editora Pires do Rio, 1ª edição, (pp.63-106), Janeiro, 2016, Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/312191983_Orgaos_dos_sentidos_Desenvolvimento_sensorial. Acesso em: 18/12/2020.
[1] Professor de Filosofia na Rede Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: rafaeb26@gmail.com
[2] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
[3] Não entraremos aqui, por se tratar de um texto breve, na questão sobre a validade daquilo que percebemos: será que percebemos tudo o que há para perceber ou sofremos limitações que nos impedem de acessar o todo de um evento e, com isso, temos apenas imagens idealizadas dele, gerando assim pensamentos igualmente idealizados e limitados?
O texto é o 13º da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo Moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
- Rap: Crítica e Resistência, de Thalyne Barros Soares e Isabella Krein Soares, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/.
- Reflexões sobre a Prática Filosófica no Brasil, de Silas Miqueias da Silva, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/13/reflexoes-sobre-a-pratica-filosofica-no-brasil/.
- Diálogos Atemporais, de Augusto Henrique Gamarra de Souza, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/20/dialogos-atemporais/.
- A Pluralidade Histórica e os Sistemas de Valor, de Marielly Romeu Marcelino, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/27/a-pluralidade-historica-e-os-sistemas-de-valor/.
- O Projeto Radical de Uma Filosofia Científica, de Marcio Ponciano da Cunha Junior, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/06/o-projeto-radical-de-uma-filosofia-cientifica/.
Esse é uma perspectiva vital para a gestão: separar o que é subjetivo (percepção) daquilo que é fático (evidências), o tal do ‘crivo da razão”, conceito com o qual o autor encerra o texto.
As percepções que temos sobre fatos, acontecimentos, geram pensamentos que buscamos comunicar, mas nem sempre o que pensamos ter comunicado é entendido da mesma forma pelos receptores dessa comunicação, pois cada um recebe a comunicação e a processa a partir de sua realidade de vida, onde há interferência de emoções, concepções próprias. Várias pessoas podem ouvir uma comunicação, mas cada um faz a sua própria leitura e interpretação e, por isso, há tantas dissonâncias nos processos comunicacionais e relacionais. Como o próprio texto diz, temos limitações que nos impedem de acessar a visão holística do todo. As pessoas têm percepções e compreensões distintas sobre um mesmo fato ocorrido e é justamente isso que tornam os processos de comunicação e relacionais tão complexos.