“Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto [como queria Nietzsche] – mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai – a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente” (Lacan, Seminário 11, p.60).
O contexto é a análise do sonho recolhido por Freud, aquele em que o filho morto do sonhador, o velho que pegou no sono enquanto velava seu filho, é despertado pela interpelação “Pai, não vês que estou queimando?”, ao mesmo tempo que a vela incendeia o caixão.
Deus é Pai, diz a religião. Freud o confirma, ironicamente. Freud se diz ateu, sem Deus, sem deus, judaico ou pagão, e denuncia a alienação religiosa: Deus é criação humana ditada pelo desemparo, do fundo do abismo sem fundo.
Intrigado, perguntei a MDMagno: como você entende isso? No sentido substantivo ou adjetivo do termo? E ele: “nos dois”. Perguntei a Horus Vital Brazil, e a resposta veio com um “inacessível, inacessível”.
“Sou filho de padre”, dizia Lacan, segundo Jacques-Alain Miller. “Educado pelos irmãos maristas”, continua Miller, “ele foi um menino devoto, tendo adquirido um conhecimento sensível, íntimo, dos tormentos e astúcias da espiritualidade cristã. Também sabia falar maravilhosamente aos católicos e adestrá-los na psicanálise. A Sociedade de Jesus apostou em sua Escola”, palavras recolhidas em O triunfo da religião/Precedido de discurso aos católicos, J. Lacan.
Perguntei a Ivan Corrêa, psicanalista e ex-padre, e jesuíta, se ele achava que o fundamento da psicanálise era religioso. “Sim”, respondeu. E corrigiu: “não há ex-padre, uma vez padre, sempre padre”.
“Freud, velho otimista do Iluminismo, achava que a religião não passava de uma ilusão, a ser dissipada no futuro pelos progressos do espírito científico”, continua Miller. “Lacan, absolutamente: pensava, ao contrário, que a verdadeira religião, a romana, no fim dos tempos arrastaria todo mundo, derramando carga máxima de sentido sobre o real cada vez mais insistente e insuportável que devemos à ciência.”
“Ninguém realmente escapa à crença – traço que merece ser enfatizado especialmente nos dias de hoje [2012], em nosso tempo supostamente sem Deus. Quer dizer, em nossa cultura secular, pós-tradicional, hedonística e oficialmente ateia, na qual ninguém está pronto a confessar publicamente sua crença, a estrutura subjacente à crença é tanto mais disseminada – todos nós, secretamente, cremos”, disse Slavoj Zizek, “o filósofo mais perigoso da atualidade”, no seu livro O amor impiedoso [ou: Sobre a crença].
Qual seria “a estrutura subjacente à crença”? O gozo?
“Todos nós, secretamente, cremos”, diz Zizek. “A posição de Lacan é aqui clara e inequívoca: ‘Deus é inconsciente’, i.é., é natural ao ser humano sucumbir à tentação da crença. [Como assim, Zizek? Você é um dos maiores “desconstrutores” dessa ideia de “naturalização” do ser humano…]”
“Essa própria predominância da crença, o fato de que a necessidade de crer é consubstancial à subjetividade humana é o que torna problemático o argumento-padrão evocado pelos crentes no intuito de desarmar seus oponentes; apenas aqueles que creem podem entender o que significa crer, de modo que os ateus são a priori incapazes de argumentar contra nós…”
Trata-se do tal “lugar de fala”, que impediria qualquer um de falar com propriedade das minhas “idiossincrasias”?
“A falsidade desse raciocínio está em sua premissa: o ateísmo não é o grau zero que qualquer um poderia entender, uma vez que significa apenas a ausência de (crença em) Deus – talvez nada seja mais difícil do que sustentar essa posição do que ser um verdadeiro materialista.”
Lacan desafiava os supostos ateus publicamente, em seus seminários, a tomarem a palavra para defender seus pontos de vista, como se fosse fácil interpelar Lacan em público. Será que temiam sua “língua preta”? E isso era coisa para ser decidida assim de supetão?
“Na medida em que a estrutura da crença é aquela da Spaltung und Verleugnung [cisão e desmentido] fetichistas (“Sei que não há grande Outro, mas ainda assim… [secretamente creio Nele”], apenas o psicanalista, que endossa a inexistência do grande Outro, é um verdadeiro ateu.” [Superestima dos psicanalistas?]
Verleugnung (desmentido, renegação) é o operador estrutural da perversão. O fetichismo é a perversão por excelência. Sua base é a percepção da anatomia materna pela criança: “Eu sei que ela não tem pênis [falo], mas mesmo assim tem.” O objeto-fetiche seria o substituto do pênis materno e explicaria uma série de “fixações” (nos pés, por exemplo). Qualquer objeto seria substituto daquele objeto desde sempre perdido, segundo Freud. O que explicaria nossa “condição fetichista”, que se distinguiria do fetichismo, na medida que “precisamos” de objetos.
“Mesmo os stalinistas eram crentes, na medida em que sempre invocavam o Juízo Final da História, que determinaria o ‘sentido objetivo’ de nossos atos.”
“Até um transgressor tão radical como Sade não era um ateu consequente; a lógica secreta de sua transgressão é um ato de desafio endereçado a Deus, i.e., a inversão da lógica-padrão da cisão fetichista: ‘Sei que não há grande Outro, mas ainda assim…’: ‘Embora saiba que Deus existe, estou pronto a desafiá-Lo, a violar suas proibições, a agir como se Ele não existisse!’”
“À parte a psicanálise (a freudiana em contraste com o desvio junguiano), foi talvez apenas Heidegger que, em seu Ser e tempo, desdobrou uma consequente noção ateia da existência humana, lançada em um horizonte finito e contingente, com a morte como sua possibilidade última.”
Não esquecemos que, para Heidegger, “o homem é um ser-para-a-morte”, embora haja alguns autores, como MDMagno, que prefiram dizer que “o homem é um ser-para-a-obra”, com menor potência retórica.
Ao final da introdução que fez para o livro sobre a crença, Zizek declara seu objetivo: “reverter essa deplorável tendência predominante”, a tendência “natural” da crença num grande Outro. Zizek se diz um “ateísta incondicional e fora de moda (materialista dialético mesmo)” e propõe o “retorno à estrutura simbólica que subjaz ao cristianismo”. O que ele descobre é surpreendente. Zizek dá um baculejo na teologia e descobre que Deus não é inacessível apenas ao homem, mas também a si mesmo, e a prova viva disso é o Cristo (“Pai, por que me abandonaste?”).
Fazendo revista nas partes íntimas do investigado, como qualquer tira de rua, Zizek conta a seguinte historinha:
“Em 1991, após o golpe anti-Ceausescu encenado pela própria nomenklatura [o tradutor explica: “termo russo, derivado do latim, referente à burocracia ou ao grupo dirigente da União Soviética. Ela incluía altos funcionários do Partido Comunista da União Soviética, além de trabalhadores com cargos técnicos, artistas e outras pessoas que gozavam da simpatia do Partido”], o aparato da polícia secreta romena, é claro, permaneceu plenamente operativo, seguindo seus negócios como de costume. Contudo, o esforço da polícia secreta para projetar uma imagem nova, mais gentil, de si mesma, em sintonia com os novos tempos ‘democráticos’ resultou em alguns episódios inusitados. Um amigo americano, que à época estava em Bucareste, com uma bolsa da Fullbright, ligou para casa uma semana depois de sua chegada e disse à namorada que ele estava em um país pobre, mas amistoso, onde as pessoas eram agradáveis e ávidas para aprender. Após desligar, o telefone tocou imediatamente; ele atendeu, e uma voz lhe disse, em um inglês ligeiramente canhestro, que era o oficial secreto cujo dever era ouvir suas conversas telefônicas e que queria agradecer-lhe pelas boas coisas que havia dito sobre a Romênia – desejou-lhe uma boa estadia e se despediu. O presente livro é dedicado a esse trabalhador anônimo da polícia secreta romena.” (!?)