Eu a encontrei por acaso num barzinho de periferia chamado Drinks do Geraldo. Eram quase duas horas da manhã, de um sábado qualquer. Eu tinha bebido umas e outras, estava meio alto e a vontade de voltar pra casa era nula. Quando zanzava por aí, sem rumo certo, andando feito nômade, passei na porta daquele bar e resolvi entrar para um último destilado da noite. Na minha vida, era mais uma noite vazia, dentro de um bar vazio, como todos os outros vazios da minha vida. Tá, digamos logo, um sábado também vazio.
Ela estava com um grupo pequeno, um pessoal sem-graça, os de sempre, estilo mauricinhos. Qual era mesmo o seu nome? Seria Júlia? O branco encheu a minha cabeça. Não me lembrava de seu nome. Mas era bonita, demasiado bonita, uma dessas mulheres que, quando a gente vê pela primeira vez, nunca mais a esquece. A mulher nocauteante. Notei que ela percebera a minha presença. Foi nesse momento que os nossos olhares se cruzaram, como dois animais que se reconhecem pelo cheiro. Ela me apresentou aos seus amigos. Depois, me perguntou:
– Você não quer ficar aqui com a gente?
Por que não? Não tinha mesmo pra onde ir e estava a fim de companhia feminina, ou seja, de uma boa conversa, se me lembro bem de nossos antigos bate-papos. Peguei uma cadeira da mesa vizinha e sentei-me ao seu lado.
O tal Drinks do Geraldo tinha vários fregueses espalhados pelos cantos, com mesas para quatro pessoas, nem todas ocupadas. Os garçons, displicentes, circulavam como tartarugas, arrastando consigo, numa indisfarçável sina noturna, o peso de muitos líquidos consumidos por todos os bêbados da cidade.
O som mecânico de música sertaneja impregnava o ambiente de um ranço de cafonice rural. Do teto, pendiam ventiladores de hélices. Uma pintura nova não faria mal nenhum às paredes. A iluminação rala, provinda de lustres que imitavam art déco, emitia um tom amarelado que projetava, deformadas, as nossas sombras sobre o piso encardido. Pode ser que, em algum dia do passado, com bastante favor, esse bar tenha tido algum charme.
Não muito distantes de onde estávamos, ficavam três mesas de sinuca. A da esquerda era ocupada por dois rapazes negros que batiam nas bolas com maestria, como os profissionais o fazem. As outras duas estavam desocupadas. Pensei: “Mais tarde, vou convidar a moça pra darmos umas tacadas.”
Sem prestar muita atenção, vi quando o rapaz mais novo bateu com toda força na bola branca, fazendo-a saltar da mesa. Ele fez de conta que não tinha acontecido nada e, andando com molejo, pegou a bola, retornando ao jogo.
No balcão, sentado em um banquinho de pernas longas e trêmulas, um bêbado conversava sozinho, fazendo gestos desconexos. Atrás, um homem atendia aos pedidos e preparava as bebidas. Devia ser o tal Geraldo, que o luminoso anunciava lá fora. Nas prateleiras, às suas costas, havia espelhos e rótulos de bebidas iluminados por luzes laterais.
Depois dessa geral, estava na hora de conversar com a moça, desabrochada ao meu lado:
– Foi uma surpresa encontrar você aqui.
Ela bebeu um gole do líquido branco que estava à sua frente e, parecendo triste, falou sem muita convicção, uma tristeza de domingo pairando em seus olhos:
– Num estou nem aí pra este lugar. Aquelas coisas de antes, pra mim, bye, bye!
– Você num tá falando sério! – exclamei, enquanto o garçom chegava.
Eu a conhecia havia alguns anos. Fora minha colega na graduação. A gente conversava muito nos corredores e nos bancos do pátio. Eu sempre tive a maior tesão por ela. Além de gostosa, era inteligente, alegre e admirava os mesmos autores que eu lia. Nós conversávamos bastante sobre literatura, cinema, filosofia, antropologia, arte renascentista. Ela pertencia a uma família da burguesia do agronegócio que possuía fazendas com dezenas de empregados e lindos boizinhos pastando nas verdes colinas.
Enquanto eu bebia o meu uísque, perguntava-me que espécie de grilo uma garota bonita e rica poderia trazer pra dentro de um bar mequetrefe como aquele.
Mas a ideia que eu fazia dela ali, do jeito que se encontrava, linda como uma flor da noite, pude logo perceber, era apenas um estereótipo grosseiro. Mulheres ricas e bonitas não têm também o direito de zanzar por aí? A não ser que sejam muito idiotas, pra frequentar sempre o mesmo lugar de sua classe social.
As pessoas com quem ela estava não estimulavam uma aproximação. Após as apresentações, eu as detestei. O Carlos, o mais exibido, tinha o corpo malhado em academia: um Rambo de província, desses que acreditam que podem tudo porque têm bastantes músculos e escassos neurônios. A Shirley, a que ria à toa, deixando escapar sorrisinhos infantis, cintilava nos cabelos o brilho da loura produzida em farmácia. Os outros dois, Marcos e Cíntia, lembravam esses casais sem personalidade e glamour, com as suas roupas de grife, procurando ostentar uma riqueza improvável. De modo geral, são os alegres da noite, que se divertem com álcool e anfetaminas. É fácil rir deles. Os que se dizem ricos são alvos fáceis de zombaria, segundo os cartunistas sagazes.
O olhar da minha antiga colega, eu reparava agora, era tristonho e suplicante, de uma tristeza apagada, esse olhar que às vezes a gente observa num cachorrinho faminto – uma expressão, pra resumir, que ela nunca tivera e à qual faltava a vivacidade de antes.
– Júlia, aconteceu alguma coisa com você? (Eis que o seu nome veio num sopro: era mesmo Júlia!).
– O que você acha?
– Não sei. Parece que você não está numa boa.
– E era pra tá?
Não deixei de perceber o tom agressivo, mas deixei passar. Em seguida, suavizou o tom.
– Faz um mês que o meu pai morreu. Estamos vivendo o caos lá em casa.
Pra demonstrar o meu espanto e a minha solidariedade, coloquei a minha mão sobre o seu braço e apertei-o carinhosamente. Eu não sabia o que lhe dizer com a revelação que acabara de fazer. Acho que ela entendeu o meu gesto, pois, apesar de seu estado melancólico, olhou-me com ternura. Logo depois, abaixou a cabeça. E se ela estivesse pensando em alguma coisa, deveria centrar-se no que estava diante dos seus olhos: pontas de cigarro, tampinhas de cerveja, palitos de fósforo, manchas esparsas, todos esparramados no piso imundo. Podia também não estar concentrada em nada, desligada de tudo, perplexa com a sua vida. Os seus colegas nos observaram por um instante, sem denotar interesse, e depois continuaram a conversar, lá no mundo e no assunto deles.
Mas o que eu queria mesmo, naquele instante, é que ela pensasse no calor da minha mão, agora acariciando com doçura o seu braço. Continuei calado. Falar o quê? Não conhecera a sua família, muito menos o seu pai, e, pra mim, como pra muita gente, era difícil abordar assunto de morte. Eu não queria, por nada desse mundo, estragar aquele reencontro. Naquela noite, eu pretendia ser o bom samaritano.
– Às vezes, me sinto muito esquisita, sem direção, sem saber o que fazer…
Sim, eu poderia até adivinhar o que ela queria dizer: já havia passado pela experiência do luto. E antes de permitir que eu dissesse qualquer coisa, ela continuou. Ela queria conversar. Aquela noite prometia.
– Eu não perdi só o meu pai. A minha família arruinou-se: perdemos tudo.
O que ela queria dizer? É claro que o Plano Collor estava fodendo a vida de todas as pessoas – ricos e pobres, mais a dos pobres do que a dos ricos –, mas eu não tinha conhecimento de que famílias de bom suporte patrimonial, como a dela, tivessem se lascado por causa de medidas drásticas. Só se fosse outra coisa, combinando com a situação econômica em que todo mundo estava atolado. A ideia me veio repentinamente, sem nenhum esforço, essa patacoada: ela perdeu o pai, e a gente, o país.
⁕ ⁕ ⁕
Os jogadores faziam agora estardalhaço, soltando risadas e fazendo comentários sobre as bolas que iam sendo encaçapadas. Jogavam ao mesmo tempo em que dançavam. Era visível que estavam bêbados. (Mas, ali, quem não estava?). O mais jovem então dava alguns pulos e, de vez em quando, imitava um violão com o taco estendido sobre o peito, seguindo o ritmo da música que, para mim, era um tormento.
Os outros fregueses, entorpecidos, conversavam em suas mesas, meio cabisbaixos, meio lerdos, sem manifestar curiosidade pelo que estava acontecendo no ambiente. Às vezes, sobressaíam uma gargalhada e um tom de voz mais exaltado. Atrás do seu balcão, o suposto Geraldo tilintava copos. Os garçons esperavam, sonolentos, os pedidos. A noite dirigia-se à madrugada.
Em mais uma jogada desastrada, depois de uma tacada violenta, a bola branca espirrou de novo da mesa. Só que dessa vez ela veio quicando tac-tac-tac no assoalho, até chegar à nossa mesa.
Numa atitude imprevisível, Carlos levantou-se e, com desprezo e provocação, chutou a bola no rumo dos jogadores. Ele já estava bem alto, inconveniente, a voz chapada. Um deles desafiou-o com uma expressão de “Qual é a tua, cara?”, sem tirar os olhos dos seus gestos zombeteiros, enquanto se abaixava pra pegar a bola.
– Crioulo só faz besteira.
Eu fiz de conta que não ouvira. Desde o início, o meu santo não batera com o dele. Por isso, não queria discutir, naquela noite, por nada desse mundo. Nem pra lhe dizer que era um babaca. Dava pra deduzir que fazia questão de terminar a sua noite dando porradas em negros. Acho que ele percebera, desde a apresentação, que eu fora pouco amistoso. Em nenhum momento, dirigi-lhe a palavra. Nunca suportei fascistas de boutique.
– Você conhece aquela piada de preto? – perguntou ao seu grupo.
Shirley começou a rir antes mesmo de ele iniciar a anedota. Era mesmo uma cretina. Nesse momento, já não dava mais para fingir que eu não ouvira. Júlia parecia indiferente, distante, em outro lugar, longe de onde estávamos. Na bucha, perguntei-lhe:
– Júlia, que tal a gente pular fora?
– Você tem um baseado?
– Aqui não; lá em casa.
– Então vamos.
Com um aceno, mandei à merda os amigos de Júlia.
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Eu dirigia agora por uma alameda escura e deserta.
Olhava para as copas das árvores – o desenho irregular e fantasmagórico que elas faziam contra o céu pincelado de nuvens cinzas. Eu gostava de dirigir por ali durante as madrugadas. Era o meu velho caminho de casa.
Júlia quase não conversava: talvez a noite fosse uma sombra de lápides para ela; podia ser ainda que as sombras sufocassem a sua alma, deixando-a ainda mais taciturna. Sem me preocupar em especular demasiado sobre os seus sentimentos, peguei a sua mão e beijei-a. Ela me olhou de modo meigo e sorriu. Depois, esticou-se toda e colocou a cabeça em meu ombro. Com um movimento delicado, aninhei-a depois no meu colo, sem nenhum pudor, enquanto acariciava os seus cabelos.
Eu sabia o que ia acontecer quando chegássemos em casa. Colocaria uma das minhas maravilhosas divas no aparelho e ouviríamos blues. E, em seguida, a história de Júlia seria desfiada, uma mulher linda que a vida tinha transformado num ser triste e amuado, emaranhada em seu novelo.
Eu também tinha o meu desespero, mas era um desespero cínico e bem controlado com gotas de Rivotril. Eu sabia também que haveria um reencontro de corpos dispersos e adiados, corpos que, de um modo ou de outro, a vida tinha moído sem nenhuma comiseração. E tinha certeza, vinda de uma fresta do meu espírito, que eu poderia amá-la com a tranquilidade dos corpos que, por um momento, equiparam-se – e reequilibram-se. Mais ainda, eu sabia que Maybe I’m a Fool, na voz rouca de Aretha Franklin, o baseado, a história e as carícias que trocaríamos eram tudo o que aquela noite me oferecia. Pra mim, esse reencontro significava uma riqueza que deveria ser lentamente absorvida, beijos após beijos, fluidos após fluidos, na entrega das almas. Porque era demasiado bom pra encerrar uma noite, sobretudo pra quem vivia num país triste, numa cidade triste, num sábado vazio e perto de pessoas amarguradas. Talvez eu até encontrasse, no final, a alegria e o conforto que sempre procurara. Era bom estar ali, ao lado de Júlia, e voltar mais uma vez pra casa.