[Por Luís Araujo Pereira e Rosângela Chaves]
Em seu livro de estreia, Sentimentos Carimbados, Tarsilla Couto de Brito apresenta-se ao leitor como uma poeta que o desnorteia. Esse desnorteamento, sem dúvida, é provocado pela escolha do tema: o amor em tempos de pandemia. Trata-se de um conjunto de 30 poemas que procuram, de vários modos, explorar as agruras do fim de um relacionamento em meio à angustiante experiência do isolamento social. Para isso, a autora recorre a formas breves que ora revelam autoironia e humor, ora estranheza e enigma. A forma epigramática, a sombra do haicai e o poema-piada são alguns suportes. Encontram-se aqui e ali pegadas da geração mimeógrafo. Apesar dos versos breves, a poeta não esconde do leitor as suas sacadas. Revela-as como chave de leitura.
Tarsilla é professora de Literatura do curso de Letras da UFG e assina a coluna NoNaDa em Ermira Cultura. O lançamento do livro Sentimentos Carimbados será nesta terça-feira, dia 20 de abril, às 20 horas, na página do instagram da editora Goiânia Clandestina (@goianiaclandestina). A obra é um projeto artesanal que inaugura o Besouro Ateliê Gráfico, da editora Goiânia Clandestina, com concepção visual do artista gráfico Guga Valente. A seguir, confira a entrevista que Tarsilla concedeu, por e-mail, a Ermira Cultura sobre o seu livro de estreia.
O amor acaba, o amor acabará, o amor acabou, o amor acabando. Em qualquer tempo, o amor jamais dura nos seus versos. Como é esse exercício poético da dor de cotovelo, nessa terra de breganejos em que o caminho sempre mais fácil é rimar amor com dor?
O exercício poético da dor de cotovelo neste livro foi forjado na autoironia, num distanciamento de si, que me permitiu ver e sentir o fim de uma relação e o fim da era presencial do ponto de vista de quem leu, muito jovem, aquela crônica do Paulo Mendes Campos que começa assim:
“O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas.”
Toda educação estética formula uma estrutura de sentimento. Essa crônica ressoa na minha cabeça há anos: a banalidade desse sentimento tão romantizado, sua fragilidade, sua beleza efêmera. Então comecei a explorar as conjugações do verbo acabar, mais importante, no caso de Sentimentos Carimbados, do que o próprio substantivo amor. Aliás, o verbo acabar vincou minha dor de cotovelo ao próprio contexto de pandemia gerada pelo vírus da Sars, que, como vimos e vemos, é capaz de acabar com muito mais coisas. Para além das relações amorosas, essa pandemia, intencionalmente mal gerida, genocida mesmo, acabou com nossa capacidade de sonhar ao ponto de nos deixar imobilizados em casa. O amor, neste livro, é também uma metáfora desse momento de fraqueza emocional e psíquica em que vivemos.
Sentimentos Carimbados chama a atenção pela brevidade e pela contenção de seus 30 poemas. Amor e pandemia dispensam a falação?
Acho que não. Mas eu escolhi a forma breve, epigramática, do chiste, pelo que ela oferecia a mim mesma como possibilidade de riso amargo, aquele riso machadiano de canto de boca, contido. Imagino que outras poetas, outras autoras encontraram diferentes formas de falar disso. De qualquer maneira, há uma materialização verbal e espacial do próprio sentimento de isolamento vivido neste ano zero da pandemia. A contenção dos versos, às vezes um poema se faz com um único verso, pode expressar a própria contenção que nos foi a todos imposta. Contenção de gestos, de afetos, de raivas. Quem não se sentiu restrito, preso, limitado com tudo isso? E dizendo mais pessoalmente, tem aquilo que vocês chamaram de “dor de cotovelo”: o fim de uma relação dentro do isolamento social, necessário o isolamento vale enfatizar, me fez sentir muito mais isolada e impotente. Talvez a contenção venha disso. Mas isso é a poeta dizendo, e sabemos que não podemos confiar muito nos poetas dizendo de si mesmos…
“O amor, neste livro, é também uma metáfora desse momento de fraqueza emocional e psíquica em que vivemos”
O projeto gráfico reflete a concepção dos poemas. Como o verbo conversa com o visual no seu livro?
O projeto gráfico foi pensado junto com meu querido amigo Guga Valente. Ele leu tudo, se empolgou, eu pedi uma capa com uma cadeira vazia – que ele realizou com elegância minimalista. Além disso, eu fiz questão dos carimbos artesanais. Então, mais uma vez, juntos, pensamos em “clichês”, no sentido de que todo amor é clichê, e também de que todo livro, materialmente falando, é composto tipograficamente. Assim, resolvemos selecionar algumas palavras e imagens dos textos poéticos para transformá-los em uma outra possibilidade de carimbar os sentimentos. Por isso cada livro, depois de sair da gráfica, vindo para minhas mãos, segue para as mãos do leitor como um objeto único, pois, em uma análise combinatória produtiva, a sequência de carimbos nunca se repete, a não ser como um borrão. Há ainda o trabalho artesanal do talentosíssimo Mazinho, ele também poeta e coordenador do projeto Goiânia Clandestina. Pelas mãos dele, o livro saiu em formato pocket, com capa e miolo de qualidade, além da delicada costura dos cadernos feita à mão. Ouso dizer que o livro vale pelo conjunto, não apenas pelos poemas.
Quais são as autoras e os autores que carimbam a sua escrita?
Neste caso, especificamente, já mencionei a fonte direta do Paulo Mendes Campos. Mas acredito ser fácil reconhecer as leituras que fiz de Emily Dickinson, Oswald de Andrade, Cacaso, Ana Martins Marques, Leminski e Ana Cristina Cesar. E ainda algumas frases perfeitas de Clarice Lispector que leio sempre como pequenos poemas incrustados na prosa. Só não consigo estabelecer uma hierarquia entre essas figuras que me rondam como fantasmas na hora da composição.
Na vida e na arte, quais são os próximos carimbos de Tarsilla?
Tenho me dedicado muito à narrativa visual por meio de autorretratos. Uma série sai agora na edição de estreia da revista Tem Base?, organizada pela Alda Alexandre. Haverá uma exposição fotográfica com outra série na cidade do Porto (Portugal) organizada pela professora Elizangela Pinheiro. Por fim, e estou ansiosa por isso, tem um livro prontinho na Grafisch Atelier Hidrolands que sai pelas mãos dos artistas Marcelo Solá e Maurício Mota – este livro de poemas em devir chama-se A Mulher que Nasceu sem Metafísica.
Livro: Sentimentos Carimbados
Autora: Tarsilla Couto de Brito
Editora: Goiânia Clandestina
Páginas: 71
Preço: 30 reais
O livro pode ser adquirido diretamente pelas redes sociais da autora (@tarsillacouto) e da editora Goiânia Clandestina (@goianiaclandestina).
Tanta coisa ruim no pacote da pandemia do COVID! Além de tanta gente perdendo pessoas queridas, tanto sentimento de raiva, revolta; tanta gente se revelando o pior da nossa espécie!
Não há outra forma de resistir a tudo isso senão pela palavra, seja prosa ou poesia.
Ansiosa por ler “o amor clichê” pelas páginas de Tarsilla.