[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
todos os versos que quero escrever
todos os versos que quero escrever
já foram escritos por alguém
por poetas russas polonesas portuguesas canadenses
não sei
todo exílio cabe em uma paisagem insólita
tudo o que quero dizer já foi dito
mas o bedel impõe o seu próprio ritmo
escreva cinquenta vezes na lousa
é proibido atrapalhar a aula
é proibido atrapalhar a aula
é proibido atrapalhar a aula
mas tudo o que quero gritar
está contido no engasgo
a terra se penetra de terra
raízes penhascos pedras
a terra se penetra de terra
e vento e água e espécies nunca vistas a olho nu
é assim que palavra fronteira
passa a não fazer mais sentido algum
mas isso
tenho certeza
alguém já disse.
O movimento dos pássaros (2020)
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às escuras
é preciso escrever o pouso
do mesmo modo
que se escreve o voo.
é preciso escrever o ninho
do mesmo modo
que se escreve a árvore.
é preciso escrever a queda
do mesmo modo
que se escreve a curva.
é preciso escrever o ataque
do mesmo modo
que se escreve a perda.
é preciso escrever a ausência
do mesmo modo
que se escreve o pássaro.
é preciso sobretudo
escrever aquilo que você não sabe.
O movimento dos pássaros (2020)
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um pouco depois, o nome
há uma dor
no centro da palavra
um novo corpo
irredutível em sua luz
manhã
ofuscante
que germina
e cresce
vertical
ou voa.
sístole e diástole
o seu nome arde.
você que se chama vento
não é você o assobio do vento
você que se chama cordilheira
não é você o caramujo
sob a sombra da pedra
você que se chama água
não é você o contínuo dos pingos
numa folha depois da chuva.
há uma música que nunca cessa
e a isso chamamos existência
mas o que não definimos
é o que melhor nos sabe.
um copo se partiu em infinitos estilhaços:
salamandras ou pássaros?
O movimento dos pássaros (2020)
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[4]
gnus migram através do Serengeti
gnus migram através do Serengeti
borboletas monarcas aos milhões
atravessam as Américas
as renas percorrem mil quilômetros
para chegar ao norte
e o bobo-escuro
quase um albatroz
dá uma volta e meia no planeta
sessenta e três mil quilômetros em bater de asas
quase a mesma coisa que o trinta-réis do Ártico
só o homem
essa espécie estranha
feita de papel e assinaturas
entende o que é limite fronteira borda
só o homem
sabe o que é corrente cadeado corda
só o homem
essa espécie estranha
entende o que é polícia.
O movimento dos pássaros (2020)
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[5]
roteiro
quando você anda pelas ruas
de uma grande cidade
São Paulo ou Nova York
Londres ou Cidade do México
com quantas cores você pinta seus pés?
quanto sangue você injeta no peito
quando calmamente coloca
aquele blues para tocar
no gramofone antigo e original
que comprou no Mercado Livre
e restaurou com um velho de sotaque
de algum dialeto russo que você
não sabe distinguir
porque a Rússia é muito longe daqui?
todos os dias você migra.
todos os dias você migra e nem se dá conta.
todos os dias procurando um refúgio
mais ou menos seguro
num país que não é o seu.
e no entanto
pés pintados
sangue traficado
você,
você mesmo
não passa de apenas mais um romano de livro didático
temendo pela invasão dos bárbaros
e sofrendo antecipadamente pela queda do império.
quando o meu avô
chegou a esse país
era para escravo
que o queriam
(como aos outros
antes dele)
esse sobrenome
que hoje carrego
pelos corredores da universidade
pelas calçadas de outono
com meu cachecol de tricô
e sobretudo profundamente azul
atravessou o mar
fugindo da fome
na velha Europa
(o mar
um vasto espaço
cercado de piolhos e cólera).
toda terra é feita dessa gente que se move.
O movimento dos pássaros (2020)
Micheliny Verunschk nasceu no dia 10 de julho de 1972 em Recife-PE. Graduou-se em história. É doutora em semiótica pela PUC-SP. Vive atualmente em São Paulo. Como poeta, escreveu Geografia íntima do deserto (2003, finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura), O observador e o nada (2003), A cartografia da noite (2010), b de bruxa – bonnus bonnificarum (2014), maravilhas banais (2017) e o movimento dos pássaros (2020), os dois últimos editados pela martelo casa editorial, na coleção “cabeça de poeta”. Como romancista, é autora dos seguintes títulos: Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (2014, Prêmio São Paulo de Literatura), Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017), O amor, esse obstáculo (2018) e O som do rugido da onça (2021). Tem publicações em diversas antologias, impressas e eletrônicas. A sua literatura foi divulgada na França, em Portugal, no Canadá, na Espanha e nos Estados Unidos.
Poemas maravilhosos. Leiam se for possível O SOM DO RUGIDO DA ONÇA. É emoção pura.