Há uma vigorosa lacuna a ser abordada nas questões (de)coloniais nisso que se convencionou chamar de Brasil: a soberba delirante da classe média ilustrada paulistane-carioque que acha que sabe de Brasil. E mais, acha que pode destilar suas visões errantes, preconceituosas, fetichistas, estereotipadas e/ou exotizantes sobre toda e qualquer parte deste país, como bem quiser, na hora que quiser. Constituem uma espécie de autobrasilianistas (e muitos se autointitulam decoloniais). Evidente que esta dimensão do colonialismo do eixo não opera isolada, mas associada às questões de classe, raça e gênero.
Este texto é para um monte de gente legal, outras nem tanto, muitos e muitas meus amigos e amigas, outros e outras nem tanto. Moradores da Vila Madalena, do Botafogo-Butantã, da Santa Cecília-Teresa, da(s) Lapa(s). Gente que em si é gentrificante (não que eu não seja!). Notem que este não é um texto para a burguesia do Morumbi ou do Leblon. Estes declaram seu nojo e desprezo pelo Brasil. Claro que há exceções, pois herdeiros dessa elite vão depois morar em Santa Teresa-Cecília/Vila Madalena-Lapa(s), estudar artes ou filosofia e passar a vida sendo os/as exotizadores pós-graduados do colonialismo interno bem-intencionado.
A medida de onde estar e morar do paulistane uspiano-artista-politizado-intelectualizado-de-esquerda é enfadonha. Há uma geografia do desprezo pelas cidades e regiões brasileiras que o paulistane (e o carioque) não tem nenhum problema em declarar em gesto e voz alta. Se você não mora em São Paulo ou no Rio, escolheu ir para Recife ou Floripa. Se for muito roots, aventureirão, foi pra Alter do Chão, ou alguma chapada com selo de vilamadelização já garantida. Claro, se tu fostes à Europa, também não terá que passar por constrangimentos do tipo: “nossa, mas o que você foi fazer lá? Nossa quando você volta pra Sampa, meu?”
A mentalidade colonial-artística-intelectual carioque-paulistane tem em suas cabeças perfumadas (xampu orgânico biodinâmico) e cheias de boas referências bibliográficas uma lista hierárquica de cidades, Estados e regiões brasileiras. Algumas são fetichizadas, outras estereotipadas, outras exóticas e as demais desprezíveis. O que vale para as cidades, vale também para as produções artístico-culturais, para eventos e festas populares.
No Nordeste tem Recife e Salvador, estas ocupam o lugar de destaque, são fetichizadas e não raro pateticamente adoradas (deve ser o tal daquilo que chamávamos de carnaval). O resto do Nordeste, de suas tantas cidades, são vistas com olhar de desprezo tácito e declarado (Maceió, por exemplo, é terra do Collor, nada mais pode ter ou ser) ou ocupam um lugar de um imaginário exótico: caso de Quixeramobim, Cabrobó, Juazeiro ou Petrolina. Nestas últimas, o carioque-paulistane ilustrado, quando vai, volta com o selo de descoladão-brasil-profundo-conhecedor-da-cultura sertaneja. Em Cabrobó, ele vai comer um churrasco de bode e vai postar 37 fotos no Insta. Mas vai sentir nojo da mão que levou o bode até seu prato. Em Petrolina, vai comprar água no mercado e conferir se o lacre não foi violado. Em Juazeiro, vai dormir a primeira noite mal e com asco da cama do hotel barato. Na segunda noite, vai para o hostel (recém-aberto por um paulistano) e vai passar o dia conversando em inglês com um turista canadense, explicando para ele como a cultura popular brasileira é rica.
O capital exótico-regional-cultural próprio do colonialismo interno é aceito socialmente porque quem o (re)produz é quem domina o discurso e a cena. Ignorar outras localidades e nuances regionais ou ainda hierarquizar cada canto deste país tem sido a métrica do comportamento da turma dos descoladões sensíveis e críticos do eixo RJ-SP. Turminha massa, mas que acha que o que vê do Brasil lá do Santa Teresa-Cecília é suficiente. [Aí me dizem que eu deveria colocar adesivo do Boulos prefeito no meu carro, mas eu moro em Goiânia, esse sublugar que eles veem como uma imensa e exclusiva coleção de cantores sertanejos.]
No Norte, a já mencionada Alter do Chão, paraíso tropical gentrificador do baixo Tapajós, é a menina dos olhos do paulistane-carioque que ama o Brasil profundo. Belém ganhou algum apreço pelos processos vilamadalenizadores[1] em curso, mas não sem toda carga de exotismo eloquente e supernaturalizado pela turma estudada-artista-de-esquerda do eixo centro e sul carioca, centro e oeste paulistano.
Minas Gerais tem um lugar interessante nessa visão colonial quase do bem. Ela parece ter conseguido uma espécie de certificado de interesse por inteiro. Claro e sempre colonial, claro e sempre exótica: pintada com as cores inocentes-ignorantes do olhar torpe dos descolados do eixo. Minas inteira é massa! Tudo é lindo, cultura, e tal. O sotaque do mineiro é identificado e tratado feito um bichinho de pelúcia. Ou o ilustre morador(a) do Santa Teresa-Cecília e adjacências olha com exotismo ou cria visão idílica estereotipada: lente Lapa-Vila Madalena de ver o mundo!
Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são um bloco só. Tem uma chapada dali, um pantanal de lá, mas de modo geral o carioque-paulistane-artista-intelectual-de-esquerda vê nesse meio do Brasil um monte de boi, de gente desinteressante, música ruim, uma comida boa ou outra. Nada pode existir além deste ver estereotipado! Vira e mexe, a cada dois ou três anos, pegam dessa parte aí um artista massa e levam para o eixo, cumprindo assim com a cota do somos democráticos e entendemos muito o Brasil. A cada concessão feita por eles, mais gentis e poderosos eles ficam. Mais do Brasil eles dominam. Mais decoloniais eles se autoproclamam.
Mas quando tudo vai mal, ou seja quase sempre, o paulistane-carioque ilustrado recorre a este Brasil que ele acha profundo para justificar seus projetos, escrever seus livros, solicitar financiamentos, prometer visitas, produzir teorias, tecer análises. Via de regra, esse círculo se fecha com mais reconhecimento e mais recursos, com mais um especialista em Sertão ou Cerrado morando na Vila Madalena ou no Santa-Cecília-Teresa.
Este comportamento egoico da turminha massa do eixo centro-zona sul-oeste de São Paulo e do Rio de Janeiro produz o Brasil como resto, como o outro, como a periferia, como o menor. Essa hierarquia socioespacial-cultural é chave para a manutenção do poder, do dinheiro dos editais e do monopólio da fama na mão de meia dúzia de famílias (mais uns poucos fora delas) há séculos. Se isso não é colonial não sei o que é! E insisto: nessa meia dúzia de famílias tem muita gente do bem (um punhado são inclusive meus amigues), fazendo coisas fodas, música boa, estudos incríveis, teses, danças, peças, performances… o problema é que a autocentralidade narcísica destas produções em geral abafam ou sufocam a somatória das outras produções. Operando uma sádica exotização estereotipada de tudo que não é Rio e São Paulo. Há aí um mecanismo de hierarquização que precisamos entender e destruir. Um monopólio das narrativas criativas em curso, com endereço fixo. Um novo regionalismo fetichizador bem-intencionado.
A turminha madalenizada-santaterenizada, um pouco mais talvez de cinquenta mil num país de duzentos e onze milhões de pessoas, se autoatribuíram a coroa de guardadores e representantes da cultura e da política brasileira. Eles têm plena convicção de que podem falar em nome dessa imensidão que chamamos de Brasil. Eles sabem em quem os outros duzentos e dez milhões novecentos e cinquenta mil devem ou deveriam ter votado. Sabem o que esses duzentos e dez milhões e caralhada de gente deveriam gostar de ouvir e de ver, e não se constrangem em dizer publicamente como são atrasados, ou conservadores, ou burros mesmo, ou ignóbeis, ou culpados por estarmos aqui.
Tá mais do que na hora de os machos pensarem como reproduzem o patriarcado nosso de cada dia. Passou da hora de a branquitude pensar sobre seus privilégios. Chegou a hora de a turminha decolonial do eixo Rio-São Paulo pensar sobre o Tratado de Tordesilhas que mora dentro das suas ideias e práticas.
[1]Dedicarei um outro texto inteiro a este importante estético-tema.
Uma boa percepção do problema. que coincidência com muito do que observo. Gostei do texto e considero suas observações pertinentes e boas. Coincidem em muito com minhas observações.
Em uma linguagem nada acadêmica consegues explorar com acidez o tema delicado do domínio cultural exercido por São Paulo e Rio de Janeiro sobre o restante do Brasil. “Colonialismo interno do eixo Rio-São Paulo” é uma expressão bem adequada para descrever essa forma subreptícia de dominação que submete um país gigantesco à chancela de apenas dois estados-membros. Estados de expressão cultural forte como Pernambuco e Bahia – e em grande medida o Pará – conseguem resistir a essa colonização perniciosa refugiando-se em sua cultura poderosa e na tenacidade orgulhosa de seus habitantes. Outros são vítimas ideais da dominação exercida pelos membros das elites do referido eixo. Cabe a nós que estamos fora do circuito nos libertarmos também desse domínio recusando o colonialismo. Ainda que essa recusa por vezes só ocorra após a nossa passagem por esses centros de domínio intelectual. Ótimo texto! Ótima leitura!
Gostei muito, parabéns. Eu, moradora da Zona Oeste de SP, convivo aqui com dezenas de “Guaranis- Cawovas” legítimos! kkkk Que já compram roupas “rasgadas”, já compram a imagem da rebeldia. Vejo tudo isso que falou. E vou fazer uma reflexão para ver em que e quando hajo assim. Obrigada.
Escrevi errado! DESCULPE: Guarani Kaiowá.
É “o Recife”, “No Recife”, como “no Rio”.
Um cheiro.