Na segunda parte de A Divina Comédia, o poeta italiano Dante Alighieri narra os tormentos das almas do purgatório, que expiam os pecados até serem purificadas para entrar no Paraíso. O purgatório é descrito como uma montanha, dividida em sete círculos, um para cada pecado capital. No segundo círculo estão os invejosos, cujos olhos são costurados com arame. Eles foram castigados com a privação da visão porque, em vida, a tudo dirigiram um olhar deformado – a alegria e a felicidade alheias só lhes causavam desprazer.
De Caim, no Gênesis, ao Iago da tragédia Otelo, de Shakespeare, vários são os personagens invejosos marcantes da literatura. Entre os diversos escritores que se dedicaram ao tema, o norte-americano Herman Melville (1819-1891) nos legou um dos exercícios literários mais instigantes. Billy Budd, uma novela só publicada após a morte do autor, é um verdadeiro tratado sobre a inveja.
É fato que o rótulo de mero criador de aventuras em alto-mar há tempos se descolou de Melville. Seu romance mais conhecido, Moby Dick, é muito mais do que o relato sobre a caça à famosa baleia branca – a jornada que o capitão Acab empreende pelos mares no encalço de Moby Dick, o cachalote que lhe arrancara uma perna, ganha uma dimensão metafísica, a luta entre o bem e o mal. Bartebly, outro novela de Melville, é quase um prenúncio do existencialismo de Sartre e Camus: o protagonista do texto é o homem que diz não, que se recusa a aceitar a ordem do mundo.
Em Billy Budd, o embate entre mal e bem também se repete. O mal aqui, no entanto, não é o mal cósmico, uma força monstruosa encarnada pela baleia Moby Dick, mas a maldade “civilizada”, a perfídia escondida atrás do verniz da cultura.
O cenário é de novo um navio, onde Claggart, oficial contramestre, é tomado de inveja por Billy Budd, um simples marinheiro. Billy é querido por toda a tripulação por contra de sua espontaneidade e bondade, além de uma beleza radiante que o faz parecer um anjo.
A simples visão desta criatura tão perfeita se torna insuportável para Claggart, que mais do que ninguém é consciente das qualidades físicas e morais de Billy Budd. É a inveja da malícia diante da inocência, da natureza perversa diante da vitalidade alegre e franca – um rancor que só se contenta com a destruição completa de sua vítima.
“Mas será a inveja, afinal, tamanha monstruosidade? O fato é que ela contém algo em si que a faz ser universalmente percebida como ainda mais vergonhosa do que os crimes abomináveis”, escreve Melville. André Comte-Sponville define a inveja como “o desejo do que não temos e o outro possui, somado ao desejo de ser esse outro ou tomar o seu lugar”.
E desse mal, ao que parece, ninguém está imune. Segundo Melville, a inveja se instala no coração, e não no cérebro. Por essa razão, “nenhuma inteligência provê garantias contra ela”.
Como no poema de Dante, a inveja é como uma cegueira, tornando-nos incapazes de apreciar o que há de bom e belo nas pessoas.