Levei muito tempo pra escutar. E olha que admiro muito o cara. Quando menino, andando pelas ruas movimentadas do subúrbio do Rio, tão barulhento no comércio das cinco da tarde, as rádios estalavam seus reclames nas vozes dos populares locutores gritando as miudezas comerciais de todo dia. Talvez fosse a Rádio Metropolitana. Não existe mais. Seu locutor era da estirpe das vozes árabes – os Curis, por exemplo, Ivon era cantor, Alberto lia os sinistros decretos da ditadura militar – vozes que durante décadas povoavam nosso imaginário somente sonoro, pois nem todos tinham televisão. Eu era um dos que não. De modo que o rádio…
Já disse e repito muitas vezes que a Rádio Nacional era mater et magistra de muitas gerações. Mas não era ela, eu estava na rua, perambulando depois de visitar um amigo. A estação de trem era Cascadura, espécie de entroncamento para muitos lugares, inclusive Madureira onde o samba rola de primeira. Chego de trem da Central, barulho tão ritmado, tão regularmente insistente, tem horas que nos lembra o vaivém do sexo, os trens apertados do subúrbio. Tão ritmado. Levou Robertinho Silva a criar figuras rítmicas estimulantes. Sublimações.
Sol da tarde que arde clichezando um piano ao cair da tarde, mas o calor como se fosse meio-dia, aquelas notas que me tiravam da multidão de repente irromperam na claridade daquele sol, daquele dia. Quem estaria tocando? Era só pra dizer que era de tarde? Que já era tarde na minha vidinha apenas começando? Só saudade, foi o pouco que ficou, só saudade, pois o resto ela levou. Sozinho eu vivo a sonhar, seus olhos, sua boca que diz vou voltar. Só saudade foi o que restou pra mim, só saudade, pois o resto teve fim. Amor como este não há de encontrar nunca mais, nunca mais. Estava mais pra samba-canção do que pra bossa nova, mas a qualidade… Era do cara. Dele e do Newton Mendonça.
Traduzia minha alma. Eu apenas começando e já me sentindo no fim. Vamos combinar: tá bom, Chega de Saudade veio depois e fez aquele barulho. Mas nunca ninguém me convenceu de que a saudade induz à melancolia. Muito ao contrário. A saudade é curativa. Letra e música enlaçadas iam me matando devagarinho, me matavam, mas devagarinho, killing me softly with this song, parecido. Nada do sufoco pandêmico perpetrado por torturadores no poder. Ah, mas o Tom só usa aquelas poucas notinhas, diz o imbecil. Mas todas no lugar, responde João Donato.
Que mistério carregam essas notas tão simples, fá-sol-la-la. Que condições de possibilidades, ô, Kant!, nos fazem sonhar no som? Por uma nova harmonia feita de dissonâncias e quebras de ritmo sofisticadas, e apuro formal nas letras, e ainda e sempre samba. A tristeza que balança. Não só matéria-prima, produto acabado.
Como podia imaginar que muito anos depois iria me encontrar com ele, em pessoa, na casa da pianista Laís de Souza Brasil, um apartamento em Copacabana? Por onde anda Laís? Minha irmã de grupo, por onde anda? Era assim que nos chamávamos na terapia de grupo. Laís, concertista, brilhante intérprete de Camargo Guarnieri de quem gravou os 50 Ponteios. Teve a gentileza de nos convidar, a mim e a escritora Eloí Calage para um jantar que nem precisava luz de vela, o iluminado estava ali. Sentou-se ao piano, contou histórias, um homem bonito. O dom da palavra. De nos fazer rir e ficar em paz.
Jovens são atrevidos. De repente me saí com uma da qual não me arrependo, pensava aquilo mesmo que disse, tentava entender por que gostava tanto de música, daquela música, da sua música: você me parece o Villa-Lobos possível de nossa época, e ele parou por um instante, pôs o copo de uísque sobre o piano, pensou e começou a tocar. Já não me lembro o quê. Só me lembro muito vagamente que Eloí fez matéria linda com ele, caprichadamente editada no O Jornal por Reynaldo Jardim, poeta e pensador-construtor de estruturas (o binômio Música e Informação da Rádio Jornal do Brasil é invenção dele, assim como o disk-jockey Big Boy, entre outras artimanhas de alguém que desviava o curso de riacho usando suas mãos para mudar as pedras de lugar). Muitos, os fazeres poéticos. Na entrevista, ele pega a flauta e improvisa com os pássaros.
Música sertaneja, se entendemos por sertão o grande, das veredas, de Rosa. Matita Perê é uma homenagem a Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Mário Palmério. Já não se fala mais de Mário Palmério, autor de Vila dos Confins e de Chapadão do Bugre, romances que desenham a alma brasileira, na denúncia do coronelismo. Três mineiros da pesada, e um carioca macio. Detonam.
No jardim das rosas/ De sonho e medo/ Pelos canteiros de espinho e flores/ Lá quero ver você/ Olerê olará, você me pegar.
A música é de Tom, a letra é de Tom e de Paulo Cesar Pinheiro, único sobrevivente dos cinco cabeças, vai fazer 72 anos no dia 28 de abril. Esbarro na tevê com um programa especial: Maria Bethânia, Paulo César Pinheiro e o historiador Alberto da Costa falam sobre Rosa, poesia e prosa, tem no Youtube. O saber do historiador é extraordinário. Você vê Guimarães Rosa. Mas me esqueci do que disseram, e talvez o esquecimento tenha sido uma bênção, pois só assim pude escutar No clarão das águas/ no deserto negro/ A perder mais nada/ Corajoso medo/ Lá quero ver você.
Um oxímoro? Palavrinha esquisita, figura da retórica clássica, efeito paradoxal, tipo “loucura lúcida”, e foi quando dei por mim que é disso que se trata em psicanálise. Quem não está no corajoso medo não faz análise. Esticando um pouquinho a corda semântica, também não acho que depressão seja covardia, como queria Lacan, com apoio de Dante, o que não é pouco. Insisto em que se corre o risco de cartas marcadas. Não que se diga na lata do analisante, mas dizê-lo nos cursos de formação analítica tem por efeito o desvio do curso associativo pela imposição do saber, do prestígio e da autoridade do analista transformado em mestre. Exercício de poder e culto à personalidade.
E por maus caminhos de toda sorte/Buscando a vida encontrando a morte/… Um tal de Chico chamado Antonio/ Num cavalo baio que era um burro velho/ Que na barra fria já cruzado o rio/ Lá vinha Matias cujo nome é Pedro/ Aliás Horácio, vulgo Simão/ Lá um chamado Tião/ Chamado João/…No caminho velho onde a lama trava/ Lá no todo-fim-é bom/ Se acabou João.
Mas não sem fazer uma última pirueta, que é a primeira: No jardim das rosas/ De sonho e medo/ No clarão das águas/ No deserto negro/ Lá, quero ver você/ Lerê, lará/ Você me pegar.