“Ela está olhando nos meus olhos, ela está segurando minha mão/ Ela diz ‘Você não pode repetir o passado’, eu digo ‘Você não pode?/ Como assim você não pode, é claro que você pode!’”, Bob Dylan diz em “Summer Days”, canção de “Love and Theft”, álbum lançado a 11 de setembro de 2001.
Os acontecimentos traumáticos da data deram contornos proféticos a certas faixas, mas a contribuição de Robert Allen Zimmerman à literatura do apocalipse conforma-se efetivamente ao longo da primeira década do terceiro milênio e aponta, antes de tudo, a espécie de reconstrução da Guerra Civil norte-americana. O material com que o compositor a coloca de pé, ambientando contexto polarizado e rico em contradições e ambiguidades, revela-se um turbilhão de referências populares – citações diretas ou indiretas, versos de cantigas tradicionais remodelados, apontamentos metalinguísticos, enfim um verdadeiro sampling intertextual de riqueza pouco comum.
Robert Polio, no artigo Bob Dylan: Henry Timrod Revisited (2006), considera que “Tão penetrantes e astutas são as reformulações de Dylan para ‘Love and Theft’ que eu não me surpreenderia se um dia descobríssemos que cada fragmento de discurso no álbum – não importa quão íntimo ou dylanesco – possa ser rastreado até outra canção, poema, filme ou livro”. Não conhece-se paralelo a artifício de tal magnitude, como se a obra do compositor tornasse-se campo magnético a receber influxo de gênios diversos, afamados ou não, dentre os mais capacitados dos humanos. Um contemporâneo e distendido escudo de Aquiles, écfrase a compreender toda a experiência de um povo, é o resultado final do procedimento.
Os versos que abrem este texto, por exemplo, aludem a passagem de O Grande Gatsby (1925), de F. Scott Fitzgerald, autor já referenciado em Ballad Of a Thin Man (Highway 61 Revisited, 1965). Dessa forma, personagens e obras passam inclusive a dialogar com suas próprias versões, do lado de dentro do inventário semântico do bardo de Minnesota, conforme mostra Christopher Rollason em “Love and Theft”: Or How Dylan’s Mind Multiplies The Smallest Matter (2002). Importa dizer que as linhas introdutórias, portanto, atestam a atitude que envolve as produções do período, explicitando a possibilidade de repetir impositivamente o passado e, nada obstante, ressignificá-lo do presente ao futuro. Mesmo as aspas que envolvem o título do álbum são convenientes, pois confessam respeito ao livro Love and Theft: Blackface Minstrelsy And The American Working Class (1993), estudo histórico-social de Eric Lott acerca da dinâmica racial controversa que abarca a blackface nos espetáculos de menestréis do século XIX e XX.
O compositor quase sempre publicizou seu débito a tantos influenciadores, tão corriqueiro é colocá-los para comunicar algo a partir de suas canções. A prática guarda, entretanto, potencial polêmica quando dá azo a acusações por vezes infundadas de plágio. No caso de Bob Dylan, como adiante afirmar-se-á, o artifício denota visão impessoal e ecumênica de criação artística, a apresentar o folk process como mecanismo similar, em exemplo, à colagem modernista.
Polio e Rollason elencam mais de um rol extenso de referências utilizadas por Bob Dylan nos primeiros trabalhos dos anos 2000. Polio detém-se, no entanto, em Modern Times, álbum de 2006, assim como esta análise fará. Sem aspas, o link do disco com o clássico de Charles Chaplin é evidente: em Tempos Modernos (1936), pois, Carlitos busca sobreviver ao mundo altamente industrializado e inóspito, perpetrador de indignidades que apenas o diretor, roteirista e astro seria capaz de tornar comicamente geniais e ácidas. O ambiente assemelha-se deveras com aquele esboçado por Dylan ao longo da década 1980. De outra forma, a obra de 2006 parece dizer que os tempos modernos, isto é, o século XXI, são também repercussão dos tempos passados. Como dito, certa secessão faz-se presente.
Um sustentáculo da intenção anterior é Henry Timrod (1828-1867). Jamais nomeando o poeta sulista, Bob Dylan faz uso de trechos de versos e ideias gerais dele ao menos dez vezes no decurso do álbum. Timrod, apesar da qualidade de sua escrita, é autor nebuloso até nos Estados Unidos, figurando mormente em antologias que dão conta da poesia confederada. Por duas oportunidades predecessoras, o compositor ecoou-o: tanto em Tweedle Dee & Tweedle Dum, de “Love and Theft”, quanto em Cross The Green Mountain, trilha sonora de Deuses e Generais (2003), longa-metragem épico sobre a ascensão e queda do general Thomas “Stonewall” Jackson no contexto mencionado.
Em Modern Times, o cotejo revela grandes similaridades: ao passo que Henry Timrod, no poema A Rhapsody of a Southern Winter Night, diz “Uma rodada de horas preciosas./ Oh! aqui me deliciei naquela tarde de verão,/ E me esforcei, com uma lógica mais frágil que as flores,/ Para justificar uma vida de repouso sensual”, Dylan condensa a informação na faixa When The Deal Goes Down – “Mais frágeis que as flores, essas horas preciosas/ Que nos mantêm tão estreitamente unidos”. Mais cedo na mesma canção, o eu-lírico conta que “No silêncio da noite, na luz anciã do mundo/ Onde a sabedoria cresce no conflito/ Minha cabeça confusa labuta em vão”. A seu turno, Timrod, em Retirement, disse que “Há uma sabedoria que cresce no conflito,/ E uma – prefiro esta – que descansa em casa/ E aprende suas lições com pensamento reflexivo”.
Two Portraits apresenta o dístico “Como então, ó cansada! explicar/ As fontes dessa dor oculta?”, que aparecerá em Spirit On The Water, mais uma canção de Modern Times: “Não consigo explicar/ As fontes desta dor oculta”. O poema de Timrod ainda traz “Você perceberá que no peito/ Dormem os germes de muitas virtudes,// Que, antes de sentirem o suspiro do amante,/ Descansam uma morte temporária”. Na mesma toada, a faixa Working Man Blues #2: “Eu posso ouvir um suspiro de amante/ Eu durmo na cozinha com meus pés na sala/ Dormir é como uma morte temporária”.
Há mais amostras da utilização de expressões da autoria de Henry Timrod em canções do disco. De forma semelhante, mas em menor intensidade, ecos do poeta romano Ovídio transparecem no trabalho e, novamente, a malha referencial é extensíssima. Quando as pistas a respeito do escritor confederado foram assimiladas, exsurgiu a acusação de plágio. Robert Polio a rechaça com facilidade, pois é assertivo ao dizer, em face de tais invectivas, que a humanidade presencia há décadas o sampling no hip-hop, para não mencionar um século de modernismo: com efeito, o que Bob Dylan fez foi praticar o folk process.
O procedimento folk é a maneira norte-americana pela qual a cultura popular perpetua o material folclórico no tempo e no espaço. Trata-se de constante descontextualização e adaptação de histórias, cantigas, motes e tudo o mais que componha o repertório da mentalidade comum. São efetuadas, nesse sentido, inserções do objeto pinçado em novas obras, a fim de servir ao novo tempo – a operação intuitiva é complexa e diversos estudos debruçam-se sobre ela. Não é raro, a partir do advento do direito autoral e da propriedade intelectual, que encontre conflito. Convém dizer que Dylan constrói os tempos modernos com pinceladas do passado, impulsionando um nome obscuro da literatura de seu país ao reinterpretar seus versos. A atitude resume-se em enxergar de forma impessoal a matéria-prima inspiradora.
É forçoso reconhecer, então, consoante a lição de Polio, que a colagem modernista erigida por Ezra Pound (em Os Cantos, a partir de 1925) e T. S. Eliot (em A Terra Inútil, 1922) é artifício perfeitamente igual ao folk process. Trabalhando com justaposições de imagens, canções, documentos, citações e o que conviesse à finalidade plástica e narrativa da peça poética, esses autores criaram obras sobremaneira seminais e, sem dúvidas, originais. À guisa de curiosidade, são raros os textos sobre Bob Dylan e intersecções de suas canções com a poesia consagrada que não citem o fato de ele ter colocado ambos, Ezra Pound e T. S. Eliot, para batalhar na torre do capitão em Desolation Row, de Highway 61 Revisited.
Trazer à baila temática concernente ao plágio e à repetição de motes concede lume à autoridade de Jorge Luis Borges, responsável por Pierre Menard, Autor do Quixote (1939). Um ensaio do argentino intitulado A Flor de Coleridge (1952) discute justamente o amanuense espiritual por detrás de todos os poemas do universo. “‘Dir-se-ia que uma única pessoa redigiu todos os livros que há no mundo; tamanha unidade central há entre eles que é inegável que sejam obra de um só cavalheiro onisciente’ (Emerson, ‘Essays’, 2, VIII). Vinte anos antes, Shelley sentenciou que todos os poemas do passado, do presente e do porvir, são episódios ou fragmentos de um único poema infinito, erigido por todos os poetas do orbe (‘A Defence Of Poetry’, 1821).” É menos racional do que pouco imaginativo descrer de tais assertivas. A problemática potencialmente metafísica da natureza da cultura popular é convoluta e depende de alguns exercícios de criatividade.
Borges continua: “Para as mentes clássicas, a literatura é o essencial, não os indivíduos. George Moore e James Joyce incorporaram em suas obras páginas e sentenças alheias; Oscar Wilde costumava presentear enredos para que outros executassem; ambas as condutas, embora superficialmente contrárias, podem evidenciar um mesmo sentido de arte. Um sentido ecumênico, impessoal…” É a maneira, indiscutivelmente, com que age Bob Dylan ao proceder conforme o folk process, conforme as colagens modernistas, conforme o sampling do hip-hop… E não é necessário deter-se à contemporaneidade: o escudo de Aquiles, anteriormente citado, tornou-se escudo de Eneias quando da apropriação de certas composições homéricas por Virgílio. Não é suposto diferenciar essa postura daquela criminosamente perpetrada por um plagiador, vez que tratam-se de coisas muito distintas. Polio, a respeito de Dylan, diz que “Mal poderíamos perceber que estamos dentro de uma colagem, a menos que alguém nos dissesse, ou a menos que abruptamente notássemos uma locução familiar”.
Assim, Jorge Luis Borges é capaz de arrematar a questão. “Uma observação, última. Aqueles que ‘minuciosamente’ copiam um escritor o fazem impessoalmente, o fazem porque confundem esse escritor com a literatura, o fazem porque suspeitam que apartar-se dele num ponto é apartar-se da razão e da ortodoxia. Durante muitos anos, cri que a quase infinita literatura estava num único homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Cansinos-Asséns, foi De Quincey.”
Dylan transparece acordo com essa afirmação em canções de Modern Times, ao que indica “Estive invocando todas essas almas, mortas há muito tempo, de suas covas arruinadas” (Rollin’ and Tumblin’) e “Todos os meus leais e amados companheiros/ Me aprovam e compartilham do meu código/ Eu pratico uma fé que há muito foi abandonada/ Não há altares nessa longa e solitária estrada” (Ain’t Talkin’).
Ao leitor que questione a forma pela qual o próprio Bob Dylan respondeu à querela, a declaração foi dada em entrevista de 2012 à Rolling Stone. “Ah, sim, no folk e no jazz a citação é uma rica e enriquecedora tradição. E no que concerne a Henry Timrod, você ao menos já ouviu falar dele antes? Quem o lê atualmente? E quem o trouxe à linha de frente? Quem está fazendo você o ler? E pergunte aos descendentes dele o que eles acham da comoção. E se você acha tão fácil citá-lo e isso pode ajudar você, faça por si mesmo e tente ver quão longe você irá. ‘Wussies’ e ‘pussies’ reclamam dessas coisas. É algo antigo – é parte da tradição. Essas são as mesmas pessoas que puseram o nome de Judas em mim. Judas, o nome mais odiado da história humana! E por quê? Por tocar uma guitarra elétrica? Todos esses filhos da puta maldosos podem queimar no inferno.”
O leitor pode, ainda, buscar traduções politicamente corretas a wussies e pussies.