[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[Seleção e perfil de Paulo Manoel Ramos Pereira]
[1]
O goiano da gema
O goiano da gema, o da cidade,
é sempre ou quase sempre bom sujeito,
para trabalho sério – pouco jeito;
para a intriga – bastante habilidade.
Se não tem que fazer, por caridade,
tosa na vida alheia sem respeito;
e acredita estar muito em seu direito
apoquentar assim a humanidade.
Se vai dar-te uma prosa, por brinquedo,
arruma-te um cacete, que te pisa,
qual se fora de ferro ou de rochedo,
e, cousa que aborrece e encoleriza,
visita a gente de manhã bem cedo,
quando se está em fralda de camisa.
***
[2]
No lago
O lago era risonho e alegre à tarde…
O sol, que já não arde, inda ilumina
O dorso da colina verdejante,
Que ostenta os cambiantes da esmeralda
E do ouro. Ali na fralda a onda anseia
Sobre a límpida areia, enquanto a brisa
O azul espelho frisa, e doida e andeja
No mato rumoreja.
O lago era risonho. – Uma barquinha
Leve e delgada, asinha se embalança
E sobre a escuma avança a erguida proa
Que fende a escuma à toa, sem roteiro…
Vão dentro o gondoleiro descuidoso
E mais um par ditoso… Ao longe, ao largo,
Sobre o elemento amargo, enquanto a brisa
A onda encrespa e frisa; e alegra a tarde
O sol que já não arde…
E a barquinha lá vai por entre a escuma
Que o remo corta, e apruma a erguida proa,
Ao largo, ao longe… à toa. – O gondoleiro
Sereno, sombraceiro, escuta e sonda
O crepitar da onda, e olha o horizonte
Lá por cima do monte. – O par ditoso
Deslembra, descuidoso, um noutro imerso,
O resto do universo… E a vaga anseia
Sobre a límpida areia.
E vem a noite negra e a branca lua…
E a barquinha flutua, à sorte a proa,
Ao largo… Ao longe à toa… Sem roteiro.
E dorme o gondoleiro… E o par ditoso
No êxtase amoroso, um noutro imerso,
Se esquece do universo… Enquanto a brisa
A onda encrespa e frisa, e doida andeja
No mato rumoreja.
***
[3]
Hino abolicionista
Eia! exulta, a clamar liberdade
Quem há pouco dobrava a cerviz!
Vão quebrar-se da lei na igualdade
Os grilhões de uma raça infeliz.
De Aristides ao grito acordada
Ela a triste cabeça elevou;
E o clamor de uma nova cruzada
Pelos vastos sertões retumbou.
CORO: Eia! exulta etc.
No formoso horizonte goiano,
Retocado de cores gentis,
O cruel privilégio inumano
Terminou. Já não há mais servis.
O passado sepulte-se escuro
Ante a aurora que rósea brilhou:
Rio Branco liberta o futuro,
O presente ele aqui libertou.
CORO: Eia! exulta etc.
***
[4]
O meu violão
Quando da crua lida na fadiga
Descanso peço à rede e aí me espicho,
É meu maior prazer e meu capricho
Espichar-te por cima da barriga.
Contigo travo prosa doce, e amiga
Palestra, a meia-voz, quase cochicho
E toda a minha mágoa escorropicho
Em teu seio chorão de pau-de-riga.
E vamos arranhando muita asneira,
Com ar de cançoneta italiana,
Ou de francesa música faceira.
Mas como não pescamos da germana,
Entra logo o lundu puxa-feira,
E acabamos cantando o quero-mana.
***
[5]
Só
Parei! – Chegado havia ao cimo da montanha
Aspérrima e tamanha –
O sol morria além!
Parei; sentei-me só à beira do caminho,
Sentei-me ali sozinho,
Eu só, sem mais ninguém.
Olhei atrás e avante. – Os largos horizontes
Debruçam-se nos montes.
E longes, por além,
De branco e azul e fogo e púrpura toucados,
Diziam contristados,
“Tu só, sem mais ninguém.”
Percorro o estádio feito em um só lance d’olhos
Sem contar os abrolhos,
E muito, muito além,
Nas veigas serpeava o trilho venturoso,
Que eu correra ditoso,
Eu só, sem mais ninguém.
Atrás deixava o prado, a vida, a flor, o aroma,
E o doce amor que assoma
Na juventude. Além,
Além a névoa densa, a dúvida insegura,
Além a bruma escura,
Eu só, sem mais ninguém.
Avante a escarpa está de crua descambada,
Precípite e eriçada,
Um passo mais além,
Eu vou com passo firme, e resoluto e certo
Para o eterno deserto,
Eu só, sem mais ninguém.
Perfil
Antônio Félix de Bulhões Jardim nasceu na cidade de Goiás, no dia 28 de agosto de 1845. Cursou Direito no Largo de São Francisco, em São Paulo, formando-se aos 20 anos. De volta à capital goiana, exerceu a magistratura em diversos níveis, a ponto de tornar-se, mais tarde, desembargador. Atuou no magistério regional e foi eleito deputado provincial. Como colunista, foi um ativista de cunho liberal e abolicionista, nos jornais pelos quais passou ou fundou. Faleceu de maneira precoce, em 29 de março de 1887. Passada a morte do filho, a mãe reuniu os seus versos no volume Poesias do Desembargador Félix de Bulhões, publicado em 1906. São necessários quase 90 anos para que, comemorando-se o sesquicentenário do poeta, fossem editadas as Poesias pela segunda vez. Em 1995, a Fundação Cultural Pedro Ludovico acresceu ao apanhado original poemas dispersos em periódicos e panfletos. A poesia de Félix de Bulhões registra, com muito mérito, as características românticas mais marcantes, do decadentismo ao condoreirismo, deixando espaço para um humor satírico destoante. Bernardo Élis, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, comentou a tradição literária goiana, destacando que “Nas tardes mornas de cigarras, Antônio Félix de Bulhões Jardim, o primeiro poeta goiano, chorava sua solidão de romântico, enquanto lutava pela libertação dos escravos, qual outro Castro Alves generoso e másculo”.