Os álbuns autorais mais recentes de Bob Dylan, Tempest (2012) e Rough & Rowdy Ways (2020), têm aclamação ampla e mesmo status de obras-primas, a demonstrar que a renovação constante de repertório e estilo do bardo, afirmada como método de criação, ancora-se, agora, em uma perspectiva sem paralelo na canção popular, capaz de referenciar a quase totalidade do próprio código e, naturalmente, utilizar a si como sustento.
Para atestar a anotação anterior, analise-se os dois tours de force presentes nos trabalhos: a faixa-título de Tempest e, no disco mais próximo, Murder Most Foul. São, respectivamente, a terceira e a primeira canções mais longas de toda a carreira de Robert Allen Zimmerman. O fôlego crescente mostra, consoante o último ensaio desta série, a correspondência impositiva entre a obra do compositor e a écfrase que discorre a respeito de tudo e abarque o universo sensível com pungência totalizante. A torrente referencial é cada vez maior.
A ver Tempest, pois. Desenvolve-se mote e alguns versos de uma letra provavelmente escrita por Seth Newton Mize no começo dos anos 1920 (e popularizada pela The Carter Family, dentre outros artistas), a respeito do naufrágio do Titanic, de cerca de 24 versos. Ao cabo do processo, Bob Dylan retorna com um épico, a durar 13 minutos e 54 segundos, composto de 180 versos distribuídos em 45 quadras, suficientes para pintar o microcosmo de tripulantes, passageiros e seu estado sentimental com profundidade minuciosa, sem que varie-se o tom da narrativa. Tão fora da curva são as associações que, dentre as personagens da tragédia, está “Leo” e “seu sketchbook” — trata-se, realmente, de Leonardo DiCaprio, astro de Titanic, filme de 1997 dirigido por James Cameron, como o jovem pintor Jack Dawson. Realidade e ficção interpenetram-se na malha extensa do inventário semântico de Dylan, dando-lhe uma camada a mais de espessura.
No decurso da letra, mesmo da original, há um vigia que, dormindo enquanto a fatalidade opera-se, sonha, mas jamais é alheio a ela ̶ a última quadra de Tempest diz que “O vigia, ele estava sonhando/ De todas as coisas que poderiam ser/ Ele sonhou que o Titanic afundava/ Dentro do profundo mar azul”. The Onion, jornal satírico sediado em Chicago, criou uma capa para o evento de 1912, de manchete “A maior metáfora do mundo atinge icebergue”, ao que segue a linha fina “Titanic, representação da húbris humana, naufraga no Atlântico Norte”.
Com efeito, o destino do colosso que “nem Deus poderia afundar” costuma sublinhar certa prepotência e arrogância, mas Dylan não desce ao prejulgamento dos homens. O capitão do navio “Na escura iluminação,/ Ele relembrou anos passados/ Ele leu o Livro do Apocalipse/ E encheu sua taça de lágrimas”. Assim, “Quando a tarefa do Ceifador terminou/ Mil e seiscentos tinham ido descansar/ Os bons, os maus, os ricos, os pobres/ Os mais amáveis e os melhores” e, no cais onde o Titanic deveria aportar, as pessoas esperaram, “E eles tentaram compreender/ Mas não há entendimento/ No julgar da mão de Deus.”
O título do álbum de 2012 logo suscitou analogia com a peça A Tempestade, de William Shakespeare (1564-1616), escrita entre 1610 e 1611, considerada uma das últimas, senão a final advinda da pena do poeta inglês. Era saber se, aos 71 anos, o compositor de Duluth, Minnesota, mediante um disco certamente sombrio, entregava também sua despedida, ao menos a que diz respeito às gravações originais. Ele, entretanto, foi bem-humorado, em entrevista à Rolling Stone: “A última peça de Shakespeare era chamada A Tempestade. Não era simplesmente Tempestade. O nome da minha gravação é simplesmente Tempestade. São dois títulos diferentes.”
Nos anos seguintes, ganha lume a imersão no chamado Great American Songbook. Shadows in the Night (2015), Fallen Angels (2016) e Triplicate (2017) veiculam, assim, versões de Bob Dylan para faixas integrantes do cânone da canção norte-americana da primeira metade do século XX, popularizado principalmente por Hollywood e Broadway. Entrementes, ele foi laureado com o Nobel de Literatura. Dylan, é necessário reconhecer, jamais descansou, e o retorno ao conteúdo autoral deu-se com Rough & Rowdy Ways, em 2020.
Murder Most Foul, então, é lançada como single, causando comoção. O traumático assassinato de John F. Kennedy conduz a narrativa. Mais uma vez, Shakespeare, constante em toda a obra de Dylan, é presente — “murder most foul” é como o Fantasma caracteriza o crime cometido contra si, outrora rei da Dinamarca, ao filho e príncipe Hamlet, na peça célebre, escrita entre 1599 e 1601, em seu Ato I, Cena V. O assassinato mais sujo, mais torpe, portanto, agora refere-se ao do ex-presidente dos Estados Unidos da América. Essa é a superfície da composição, que revela-se um épico sem eu-lírico definido, por 16 minutos e 56 segundos a brindar o ouvinte com a trama sensível e, parte significativa de seu corpo, a elaborada referência a dezenas e dezenas de canções que, de uma maneira ou de outra, foram importantes. Elas são endereçadas ao famoso DJ Wolfman Jack e a última delas, fechando a letra, é a própria Murder Most Foul.
Bob Dylan passa a fazer parte do universo referencial de Bob Dylan, tratando-se da primeira vez que figura-se dentro de uma de suas obras musicais com tamanha autoridade e significado. É nesse sentido que afirmam-se as extensíssimas possibilidades intertextuais que o compositor costura, mormente desde os primeiros trabalhos deste milênio.
A canção de Rough & Rowdy Ways lamenta a desilusão provocada pela morte de Kennedy: “Eles mutilaram seu corpo e tiraram seu cérebro/ O que mais eles podiam fazer? Eles empilharam a dor/ Mas sua alma não estava onde deveria estar/ Pelos últimos cinquenta anos seguem a procurar”. É possível que a alma de Kennedy seja, inclusive, uma voz ativa na trama entoada, como o Fantasma em Hamlet. E a busca pelo que representaram os alvissareiros ideais de JFK continua. Murder Most Foul transforma-se em verdadeira pintura do Ocidente, e o é o conjunto da obra de Zimmerman, sem que paire dúvida.
Esta série de ensaios procurou evidenciar não apenas as facetas do artista, mas signos que fizeram as vezes de força motriz criativa, cujas silhuetas apenas vislumbra-se, mas um exercício imaginativo consegue extrair a importância sustentacular. Amparados na tradição literária, porque ela é essencial na formação, na obra e na personalidade do gênio em tela, os textos condensaram o relevo desse panteão semiótico de riqueza ímpar. Os sonhos que formataram a primeira década da carreira de Dylan; os anjos que guiaram-no ao reconhecimento gospel no correr dos anos 1970; as perspectivas aterradoras de um mundo em franca desesperança durante a década seguinte; os contos de fadas pouco usuais e continuadores do assombro no período de 1990; o compositor, no novo milênio, como tecelão de uma malha referencial enviesada à totalidade da experiência sensível; e, por último, o prosseguimento do projeto universal, com fôlego sempre maior, a incluir a si mesmo na brincadeira. A existência dele é metáfora da canção popular como extensão da vida. Como quis o The Onion, talvez a maior metáfora do mundo, mas sem atingir fatalmente qualquer icebergue.
Este é Bob Dylan, atualmente, aos 80 anos de idade. E nada indica que, ficando para trás as restrições do contexto de pandemia, não sejam por ele ventilados novos ares na criação artística ̶ a Never Ending Tour jamais parou na pista.