Tenho sido acometido de delírios recorrentes. Deliro que moro em um lugar civilizado, deliro que o governo liga para a vida das pessoas, deliro que tivemos avanços sociais, deliro que eu e meus amigos estamos felizes. Puro delírio. Febre brava, suadouro, fantasias sem a menor correspondência com a realidade. Daí saio do transe e vejo que não, que continuo no Brasil da pandemia, no Brasil do negacionismo, no Brasil de gente que goza da liberdade de ir para a rua protestar justamente pedir o fim da liberdade de ir para a rua protestar. Sei, os delirantes são eles, mas entre faixas verde-amarelas, entre slogans patrióticos, entre buzinas de SUVs, muitas vezes sou eu que deliro.
Todos os dias entramos em novas fases delirantes. Médicos contra vacinas! Delírio puro! Renan Calheiros como bastião da saúde nacional! Delírio chocante! Presidente querendo demitir técnico da Seleção Brasileira! Delírio vintage, lá dos anos 1970, de quando o Médici estava no Planalto e o Saldanha precisou trocar a beira do gramado por uma cabine de transmissão. Não há um minuto de paz no País dos Delírios, onde existem comunistas em cada closet gigantesco de uma estrela da Globo que “não quer se posicionar”. O delírio de ver apresentador de programa dominical falar de música e arte, enquanto, em suas redes sociais, abraça o presidente que persegue os artistas. Delírio de ver tudo desabando, com aquela sensação de impotência que só os piores delírios podem proporcionar.
“Todos os dias entramos em novas fases delirantes. Médicos contra vacinas! Delírio puro! Renan Calheiros como bastião da saúde nacional! Delírio chocante! Presidente querendo demitir técnico da Seleção Brasileira! Delírio vintage, lá dos anos 1970, de quando o Médici estava no Planalto.”
Delirar um pouco até que é bom. Oxigena as ideias, nos dá uma doce sensação de fazer algo que está fora de nosso cotidiano, libera nossos demônios e até realiza alguns sonhos impossíveis. Mas viver em estado de delírio é cansativo, adoece o corpo e a alma, nos remete a um ritmo impraticável, nos faz perder amigos, nos afasta dos parentes, nos torna pessoas mais solitárias e melancólicas, tira esqueletos dos armários, dos nossos e dos alheios. Porque não sou só eu que deliro. Vivemos uma daquelas situações surreais em que o mundo inteiro parece ter ficado maluco, dando cambalhotas, sabotando a sanidade, nos conduzindo a abismos pessoais e coletivos. Um delírio assim, incessante, intenso, nocivo, ninguém aguenta tanto tempo, sem pausas ou respiros. E sem vacina para todo, lembremos.
E nosso delírio de cada dia se mistura a outros sentimentos que apenas fazem deixá-lo ainda mais delirante. Deliramos de medo de adoecermos ou de que alguém que amamos tenha um diagnóstico que nos assombra. Deliramos de ansiedade diante de situações que não podemos controlar, que nos faz ter pesadelos com a insegurança sobre o futuro, com o temor de perder renda, de ter a vida atravessada por eventos trágicos. E quando olhamos em torno, tudo o que conseguimos ver são mais e mais delírios. O delirante maior da nação entra todos os dias em nossas casas para falar de remédios sem eficácia, para ofender alguém que o criticou, para espalhar dados imprecisos, mentiras deslavadas ou puro cinismo.
“Deliramos de medo de adoecermos ou de que alguém que amamos tenha um diagnóstico que nos assombra. Deliramos de ansiedade diante de situações que não podemos controlar, que nos faz ter pesadelos com a insegurança sobre o futuro, com o temor de perder renda, de ter a vida atravessada por eventos trágicos.”
Nessas horas podemos ter um delírio catártico, como se bater nas panelas fosse suficiente para resolver nossos problemas. Quanto delírio, não? Mas qual é a nossa saída nesse imenso delírio em que estamos mergulhados? Temos de exercer a democracia, pelo menos enquanto ela existe, já que delírios parecem invadir cada vez mais rápido quartéis e corporações policiais. Alguém pode até dizer que estou delirando neste texto. Esta não seria uma leitura de toda equivocada. Escrever também é delirar. Delirar que as palavras cheguem às pessoas e as convençam que precisamos parar de delirar, que para tudo há um limite. Até para os delírios.