[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
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O mundo é um ótimo lugar
O mundo é um ótimo lugar
pra se nascer
se não te importa que a felicidade
nem sempre tenha muita graça
se não te importa um quê de inferno
de quando em quando
justo quando tudo vai bem
pois nem mesmo nos céus
se canta o
tempo todo
O mundo é um ótimo lugar
pra se nascer
se não te importa que alguns morram
o tempo todo
ou sofram só de fome
parte do tempo
o que não é tão mau assim
se não é com você
Ah o mundo é um ótimo lugar
pra se nascer
se não te importam
algumas mentes mortas
nos postos mais altos
ou uma bomba ou duas
de quando em quando
nas suas caras pasmas
ou tais outras inconveniências
que vitimam a nossa
sociedade Marca Registrada
com distinção de seus homens
e seus homens de extinção
e seus padres
e outros patrulheiros
e suas várias segregações
e investigações parlamentares
e outras prisões
de ventre que nosso torpe
corpo herda
Sim o mundo é o melhor dos lugares
para tantas coisas como
encenar diversão
e encenar amor
e encenar tristeza
e cantar baixarias e se inspirar
e dar umas voltas
olhando de tudo
e cheirando flores
e cutucando estátuas
e até pensando
e beijando as pessoas e
fazendo filhos e usando calças
e acenando chapéus e
dançando
e nadando nos rios durante
piqueniques
no meio do verão
e no sentido amplo
“vivendo até o fundo”
Sim
mas bem no meio disso chega
então sorrindo o
agente funerário
Retratos do mundo passado (1955)
Tradução de Nelson Ascher
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[2]
Tem vez durante a eternidade
Tem vez durante a eternidade
uns caras aparecem
e um deles
que já pinta bem tarde
acontece de ser um carpinteiro
de um lugar careta
como a Galileia
e ele começa a ulular
e clamar que ele é o peixinho
daquele que fez o céu
e a terra
e que o cara
que realmente estava na nossa
é o Pai dele
Além disso
ele acrescenta
Tá tudo escrito
nuns pergaminhos enrolados
que alguns eleitos
deixaram lá pelo Mar Morto algum lugar
faz muito tempo
e que vocês não vão achar mesmo
em menos de uns dois mil anos
ou pelo menos
novecentos e quarenta e sete
deles
para ser exato
e nem assim
ninguém acredita mesmo neles
ou em mim
nesse assunto
Você está com febre
dizem a ele
E o congelam
Eles o estendem na Árvore até ele esfriar
E todo mundo depois disso
está sempre fazendo modelos
dessa Árvore
com Ele pregado
e sempre repetindo o nome Dele
e pedindo pra Ele descer
e entrar no seu conjunto
já que ele é O cara quente
o que tem que mandar ver
senão nada feito
Só que ele não desce
da Sua Árvore
Lá está ele
em Sua Árvore
Bem petrificado
e frio pra danar
e ainda por cima
conforme um círculo
das últimas notícias internacionais
vindas das fontes suspeitas de sempre
realmente morto
Uma Coney Island da mente (1958)
Tradução de Paulo Leminski
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Nascer do sol, Bolinas
Este coraçãozinho que recorda
cada mínima coisa
começa o dia
no mais das vezes
tentando cantar algum
verso ensolarado
Quanta insolência, quanta audácia
em face de tudo!
Contudo cantarei ao sol
pra começar –
Quanta presunção, quanta perversão
tomar por canção os gorjeios
que talvez sejam mesmo
gritos de horror!
Como se nossa vida
como se toda vida
não fosse uma tragédia
embora tudo seja sumamente belo
Como se nossa vida
não fosse demasiado variada
para transformar tudo em litania –
Oh flauta bêbada
Oh boca de Ouropel
cante uma canção louca
para salvar-nos
Olho e peito abertos (1973)
Tradução de Nelson Ascher
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Paradoxo de Olbers
E então ouvi o erudito astrônomo
chamado Heinrich Olbers
falando a nós de um século distante
dizendo que ele observava a olho nu
o céu e constatava que havia
umas poucas estrelas mais próximas
e quanto mais longe olhava
mais estrelas havia
e um número infinito de aglomerados estelares
em infinidades de Vias Lácteas & nebulosas
De modo que se deduz
que nas distâncias infinitas
deve haver um lugar
tem que haver um lugar
onde tudo é luz
e a luz que vem do lugar elevado
onde tudo é luz
ainda não teve tempo de chegar aqui
e é por isso que ainda temos noite
Mas quando essa luz por fim chegar
quando ela por fim chegar aqui
na parte do dia que chamamos Noite
o céu será branco
com pontinhos pretos
furinhos pretos
onde antes ficavam as estrelas
E então naquele lugar tão
simbólico e poético
em que viveremos
seremos nós as nossas verdadeiras sombras
e nossa própria iluminação
na terra crepuscular
Quem somos nós agora (1976)
Tradução de Paulo Henriques Britto
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[5]
Cavalos ao amanhecer
Os cavalos os cavalos selvagens ao amanhecer
como numa aquarela de Ben Shahn
vivos em plena campina
no planalto ao longe
eles galopam
eles bufam
eles trovejam ao longe
seus cascos pequeninos
provocam pequenos trovões
insistentemente
como martelos de madeira batendo
num tambor distante
O sol ruge &
joga as sombras dos cavalos
pra fora da noite
Ecológio Noroeste (1978)
Tradução de Paulo Henriques Britto
Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers (Nova York) em 24 de março de 1919 e morreu no dia 24 de fevereiro de 2021, em São Francisco. Além de poeta, foi editor, livreiro e pintor. Ao lado de Allen Ginsberg, Gregory Corso, Jack Kerouac e William Burroughs, integrou a Geração Beat, que se contrapunha aos padrões burgueses. Em 1941, formou-se em Jornalismo na Universidade da Carolina do Norte. Na Segunda Guerra Mundial, serviu na Marinha. Fez mestrado em Columbia e doutorado na Sorbonne. Em São Francisco, fundou a livraria e editora City Lights Books, dedicando-se à publicação de poesia. Howl (O grito), de Allen Ginsberg, foi um sucesso de vendas da editora. No pós-guerra, a Geração Beat tornou-se referência para muitos jovens, antecipando movimentos importantes, como o da contracultura e o dos hippies, que são interligados. Além de romances, textos confessionais e teatro, escreveu os seguintes livros de poemas: Retratos do mundo passado (Pictures of the Gone World, 1955), Uma Coney Island da mente (A Coney Island of the Mind, 1958), Partindo de São Francisco (Starting from San Francisco, 196l), O significado secreto das coisas (The Secret Meaning of Things, 1968), Olho e peito abertos (Open Eye, Open Heart, 1973), Quem somos nós agora (Who Are We Now, 1976), Ecológio Noroeste (Northwest Ecolog, 1978) e Paisagens de vida e morte (Landscapes of Living & Dying, 1979). Marcados pela oralidade e pelo tom solene, os seus poemas são longos, planejados para serem recitados, e enfatizam a solidão nas grandes cidades, os excessos da sociedade de consumo, as promessas que não se cumprem do capitalismo. A Editora Brasiliense publicou Vida sem fim – As minhas melhores poesias (1984), com tradução de Nelson Ascher, Paulo Leminski, Marcos A. P. Ribeiro e Paulo Henriques Britto. Na apresentação da antologia, Nelson Archer comenta que “os aspectos mais literários de sua obra não podem ser inteiramente apreendidos sem referência aos seus antecessores”. Acrescenta ainda: “O uso do coloquial e da gíria, os temas cotidianos e a referência a fatos banais remetem ao modernismo norte-americano, sobretudo a William Carlos William, cuja principal aspiração era moldar uma dicção poética tipicamente americana. A recorrência frequente às citações eruditas e aos temas literários denota influência de Pound e Elliot. A forte componente humorística que transparece nos trocadilhos e nos jogos de palavras, por sua vez, provém de uma vertente peculiarmente satírica anglo-saxã, cujos poetas mais famosos são os cultores do ‘non-sense’, Edward Lear e Lewis Carrol, e cujo maior representante moderno é Cummings. Há uma corrente estrangeira, também, pela qual o poeta demonstra sua simpatia, o surrealismo, e suas referências ao pré-surrealista Apollinaire e a Neruda (além do fato de ter traduzido um volume de Prévert) deixam isto bem claro.”