O poeta Mario Quintana imaginou um futuro distante em que arqueólogos ficariam assombrados com o misterioso achado de suas escavações. Pensariam que povos primitivos teriam deixado aos pósteros um testemunho de sua adoração. Era uma garrafa de Coca-Cola. Como um objeto qualquer pode virar deus? Mas para o filósofo Slavoj Zizek não se trata de um objeto qualquer, e sim do objeto da psicanálise desde sempre perdido como Freud ensinou. Lacan o chamou de objeto pequeno a, causa de desejo e de gozo justamente por inscrever uma falta ou um excesso. E Zizek vem com a inesperada aproximação, “Coca-Cola como objet petit a”, título do capítulo 3 de seu livro O Absoluto frágil ou Por que vale a pena lutar pelo legado cristão?. O livro é do ano 2000, quando a propaganda nos martelava com o slogan “É isso aí”, para descrever o suprassumo do refresco juntando o máximo de definição possível – dizer que uma coisa é o que é – com a associação do id freudiano como sede das pulsões sexuais.
Coca-Cola seria a personificação da mais-valia, a mercadoria definitiva do capitalismo. Não surpreende que tenha sido apresentada como medicamento. Gosto estranho, de saída não satisfaz, nem agradável nem atraente. Ao contrário da água, da cerveja ou do vinho, que matam a sede e produzem o efeito desejado de tranquila satisfação, transcende qualquer valor de uso imediato. Corporifica diretamente o “isso”, puro excesso do gozo em relação às satisfações comuns. Misterioso e esquivo X que “buscamos em nosso consumo compulsivo da mercadoria”, diz Zizek.
É o caráter supérfluo que torna “ainda mais insaciável nossa sede de Coca-Cola”. Ela não satisfaz nenhuma necessidade concreta. “Nós a tomamos apenas como suplemento, depois de satisfazer nossa necessidade substancial com outra bebida.” Zizek credita a Jacques-Alain Miller a sucinta observação: “a Coca-Cola tem a propriedade paradoxal de que, quanto mais se bebe, mais sede se tem, maior é a necessidade de beber – por conta daquele gosto estranho e agridoce, nossa sede nunca é saciada de fato”. Zizek pega uma carona e associa Coca e FMI: “Não acontece algo semelhante, em um nível totalmente diferente, com a ajuda do FMI aos países do Terceiro Mundo? Não é verdade que, quanto mais esses países aceitam ajuda do FMI e obedecem a suas condições ou seguem seus conselhos, mais se tornam dependentes dele e de ajuda?”
Uma profunda ambiguidade é percebida no slogan da empresa que proclamou “Coca-Cola é isso aí! “Nunca é efetivamente isso aí , na medida em que cada satisfação abre uma lacuna do ‘eu quero mais!’” Zizek conclui que a Coca-Cola não é uma mercadoria comum. Ela encarnaria a “aura suprassensível do excedente espiritual inefável, uma mercadoria cujas propriedades materiais já são as propriedades de uma mercadoria”. Transcende. É aí que pode virar qualquer coisa, inclusive Deus.
Mas até lá – o suposto Bem – temos o sempre eficiente “serviço dos bens” (Lacan). Temos a Coca-Cola dietética e sem cafeína. “Bebemos Coca-Cola – ou qualquer outra bebida – por duas razões: por matar a sede, ou por seu valor nutricional, e pelo gosto. No caso da Coca-Cola dietética sem cafeína, o valor nutricional é eliminado, e a cafeína, como ingrediente principal de seu gosto, também é retirada – tudo o que resta é um puro semblante, a promessa artificial de uma substância que nunca se materializou. Nesse sentido, no caso da Coca-Cola dietética sem cafeína, não é verdade que nós quase literalmente ‘bebemos nada na forma de algo?’.”
E aqui de quebra uma dica importante para os clínicos. “Estamos implicitamente nos referindo aqui, claro, à clássica oposição nietzschiana entre ‘querer nada’ (no sentido de ‘Eu não quero nada’) e a postura niilista de querer ativamente o próprio Nada”; na esteira de Nietzsche, Lacan destacou que, na anorexia, não é que o sujeito simplesmente não “come nada”; ao contrário, o anoréxico quer ativamente comer o Nada (o Vazio) que é, em si, o objeto-causa definitivo do desejo. Como dizia o sambista Ismael Silva, nosso professor, “o valor dá-se a quem tem”.
O “fim do mundo” é um dos temas recorrentes de Zizek, inda mais agora nos tempos de pandemia. Podemos concordar com ele quando afirma que o século XX foi especialmente sensível a essa questão. Trata-se do fim da transcendência. Não é à toa que “na obra de Andy Warhol o objeto cotidiano e trivial que ocupa o Lugar sublime de uma obra de arte seja nada mais do que uma fileira de garrafas de Coca-Cola”. Hoje, talvez os únicos a defenderem a ideia de transcendência sejam os religiosos. Na tentativa de construir um mundo melhor pela emancipação política, Zizek se volta para eles.
O filósofo acredita na existência de um núcleo subversivo do legado cristão, o que, se for verdade, garantiria a base de uma política de emancipação universal. Filósofos são assim, querem salvar nada menos que o mundo. Querer salvar o mundo não é visto com bons olhos pela psicanálise. A clínica testemunha a ocorrência desse querer em muitos que sofrem de psicose, mas tal fato não quer dizer que todos os que sonham com um mundo melhor sejam por isso psicóticos. Há os que sonham e os que vão à prática, mesmo que se trate apenas de uma prática teórica, o que não é pouco.
Zizek não fica apenas na prática teórica, já tentou a presidência do seu país, a Eslovênia, mas não deu. Disse ele que, num eventual governo marxista, se contentaria em ser o chefe de polícia… O humor é um dos seus traços mais fortes. É assim que nos compensa da árdua leitura de suas obras, sempre ostentando elevados níveis de abstração de um pensamento altamente crítico e voltado para a concretude da práxis.
Diz a resenha do The Guardian sobre O Absoluto frágil (2000): “Para combater o tsunami da confusão espiritual pós-moderna, Zizek esboça uma reconciliação entre o marxismo e o cristianismo, excentricamente (contra Nietzsche) procurando resgatar são Paulo do cristianismo radical”. Para Zizek, “o primeiro paradoxo da crítica materialista da religião é este: às vezes é muito mais subversivo destruir a religião a partir de dentro, aceitando sua premissa básica para depois revelar suas consequências inesperadas, do que negar por completo a existência de Deus”. A orelha da capa do livro já diz a que veio. Orelhas falam, dizem tudo, ou quase. A técnica é de precisão cirúrgica: “A aposta deste livro é a de que cristianismo e marxismo podem somar forças contra o violento ataque de uma espiritualidade vazia e raivosa. O núcleo revolucionário do legado cristão é precioso demais para ser deixado aos fundamentalistas”.
Zizek não inova. Lacan, entre outros, já havia dito que o marxismo é um Evangelho por trazer a boa-nova, a boa-nova da palavra. Badiou pretendeu que São Paulo é o modelo de revolucionário. Freud era decididamente ateu, Deus é Pai (e não se vê a ironia disso), e a religião é uma das grandes invenções da humanidade no plano da sublimação, noves fora o fanatismo, os excessos da alienação religiosa. “Sou filho de padre”, diz Lacan pela boca de Jacques-Alain Miller, seu herdeiro, que publicou do mestre O triunfo da religião/precedido de discurso aos católicos, duas conferências, com datas de 1960 e 1974. A estratégia de Miller é ressaltar a superioridade de Lacan em relação a Freud. “Educado pelos irmãos maristas, ele [Lacan] foi um menino devoto, tendo adquirido um conhecimento sensível, íntimo, dos tormentos e astúcias da espiritualidade cristã. Também sabia falar maravilhosamente aos católicos e adestrá-los [sic] na psicanálise. A Sociedade de Jesus apostou em sua Escola.” Sabe-se que os jesuítas são craques na pedagogia.
Por outro lado, “Freud, velho otimista do Iluminismo, achava que a religião não passava de uma ilusão – continua Miller –, a ser dissipada no futuro pelos progressos do espírito científico. Lacan, absolutamente: pensava, ao contrário, que a verdadeira religião, a romana, no fim dos tempos arrastaria todo o mundo, derramando carga máxima de sentido sobre o real cada vez mais insistente e insuportável que devemos à ciência”. Será mesmo que a ciência é a grande vilã? Nisso estão de acordo Miller e os negacionistas brasileiros?
Podemos concordar que uma trinca formada por cristianismo, marxismo e lacanismo seria do barulho no combate ao capitalismo. E no making of dessa tríade Lacan é de uma astúcia insuperável. Não há marxista que tenha falado tão sofisticadamente de Marx quanto Lacan, ao valorizar aspectos despercebidos e subestimados de sua obra – quando, por exemplo, ele flagra o riso do capitalista gozando ao saborear a sacação da mais-valia.
Mas é também de Lacan o reconhecimento bem-humorado de que, se o capitalismo é a exploração do homem pelo homem, o socialismo é o contrário. Admissão de fracasso é no mínimo condição para um futuro sucesso. Dito isso, por que os intelectuais permanecem na mesma besteira apontada há anos por Lacan? Divididos entre direita e esquerda, canalhas e babacas, sabe-se muito bem quem é quem. Já não se zomba das previsões feitas pelo mestre parisiense, entre elas a de que “o racismo virá do futuro”.
Prever o triunfo da religião foi demais para alguns marxistas e também psicanalistas. E ainda dizer que, se a religião triunfar, a psicanálise terá fracassado. E ainda dizer que a psicanálise deve fracassar para vencer? A olhos vistos, a religião avança. Zizek constata o ressurgimento do “sagrado” como uma das características mais marcantes de nossa era. O sagrado nas suas diferentes formas, desde o paganismo da Nova Era à sensibilidade religiosa emergente nas teorias cultural e política, das quais ele, Zizek, é exemplo. Estamos diante do “se o inimigo é mais forte, junte-se a ele”? Zizek completaria: destruindo-o por dentro. Como? Assumindo a posição de um “verdadeiro materialista”.
Aqui, Zizek concorda com o Marquês de Sade ao blasfemar contra um Deus que é um “Ser supremo em maldade”, o que no fundo, segundo Lacan, é adorá-lo pelo avesso. Por um passe de mágica, será mesmo que os perversos são os verdadeiros defensores da fé? “A verdadeira tentação a ser evitada”, diz Zizek, “é declarar nosso amor por um Deus que não o merece, ainda que Ele seja real”. Para o filósofo esloveno, é só dessa maneira que renunciamos de fato a Deus – “ou seja, renunciando a Ele não só no caso de Ele não existir realmente, mas também mesmo que Ele seja real. Em suma, a verdadeira fórmula do ateísmo não é ‘Deus não existe’, mas ‘Deus não só não existe, como também é estúpido, indiferente e talvez totalmente mau’” – se não destruirmos a própria ficção de Deus a partir de seu interior, fica fácil para essa ficção aumentar seu domínio sobre nós na forma de uma renegação (“Eu sei que não existe Deus, mas Ele, não obstante, é uma ilusão nobre e edificante”). Portanto, …