[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
Excertos
[1]
os nomes sempre os nomes
descubro a amante do poeta russo
tenho um princípio de afogamento
coincidir também é cair
sempre é cair
uma
parte aberta
no corpo
silêncio
sussurra o coro de crianças
…silêncio
sinto dó do gato
afogado no bueiro
ele era preto e fofo
e bem jovem
morreu uma vida lenta
eu era jovem e morto
desde sempre menor
que isso
e rápido
meu pai
era jovem e forte
bruto e branco
ou vermelho
afogado
uma parte nunca parte
todo um tempo de análise
doze ou treze ou setecentos
anos falando
[2]
não sou um bom moço
tenho algo do porco
o espinho da rosa
o câncer da língua
o sonho da dança
o vício do Valium
tenho não sei quantos anos
tenho uma vontade
tenho algo que não sei precisar
que não cabe no corpo
o corpo é pequeno
e
estou em Brasília
que bonita é Brasília
o céu todo
tenho não sei quantos
lembro de meus avós e do mundo amargo
o céu que te esmaga
pés de Deus
assim Brasília
assim
o amor
o amor
o amor
tenho
sempre tenho
nunca
um bar bem frequentado gente de família prostitutas travestis
Mengele é a estrela do dia
sou criança e Mengele está no Brasil
destrói corpos e Deus dorme quando porco um quando rosa quando homem
[quando coisa
[3]
uma onde faca
passo horas ao piano
leio
escrevo madrugadas inteiras
me entupo de café
álcool
olho por horas as árvores
atulho a mente com palavras em outras línguas
amo a moça de pernas longas
mas não consigo nada que seja óbvio
simples
meu carro estragado irá matar-me em breve
minha casa apodrece
os e-mails se acumulam
perco os amigos
perco os sapatos
a poeira e o mofo vestem minhas camisas
estamos
separados
cantamos a trinta e oito vozes
estamos separados
estamos separados
estamos separados
estamos separados
(ad aeternum)
mantra que esmaga
ocupa folhas e folhas de papel
deste papel-carne
triste é ocupar-se com a escrita
quando tudo falha
quando não há nada mais além de
tornar-se vítreo
[4]
fui Lázaro quando criança em um teatrinho no Colégio Santo Agostinho. Lembro pouco
desse dia. O álcool e o ódio e o Valium têm destruído minhas lembranças.
os sonhos renovam tudo
inundam o corpo. Reverberam esse dia criança Lázaro.
havia um lençol branco. Sob. Eu. Um dia quente. Somos um povo do verão os goianos.
eu. Suava esperava Cristo.
correm de mim
jogam pedras pragas
rasgam-me com bisturis
amaldiçoam nome casa.
espero
espero Cristo. Ainda hoje
espero. Que Cristo me
mas não há nada novo na cidade
não há Cristo
não
ontem
ontem
ontem parte uma vez mais
um amontoado de ontens em decomposição
silêncio
silêncio
sussurra o coro de crianças
sussurra
…silêncio
é o tempo para o fim de um homem e uma mulher
chove
…silêncio…
[5]
trabalhar
honrar o pai o nome
extrair oxigênio do ar
martelar uma escada para o nada
agradecer ao Senhor pela mudez de meu genitor
sintetizar prole
financiar o amanhã
trabalhar
acumular o suficiente para ser congelado esperar pela volta da vida que
nos deixou no momento mesmo que saímos do buraco da mãe
tenho medo
sempre tenho moça medo
de ser defenestrado por esse verbo engraçado chamado
amor
tenho medo da moça que escreve
sempre tenho
medo
após
the rain encapsulates all
dead elephants
dogs
the skin above the bones
light and
underneath your voice
breath
meu corpo um barco para os maus espíritos
queimo as saudades
sou um homem
sou vários
onde quando pedra parte
onde longe
uma parte sempre fere
mais que corta
parte gato
parte moça
fere
parte ar
parte fim
sem
fim
parte
Tempo de atirar pedras e dançar, 2021
Paulo César Guicheney Nunes nasceu em Goiânia. É compositor, escritor e professor de composição na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Sua música já foi executada em diferentes países, como Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda, México e Uruguai. Guicheney fez a sua formação musical em Goiânia com o compositor Estércio Marquez Cunha. Fez mestrado em música eletroacústica e, atualmente, cursa o doutorado em ciências musicais na Universidade Nova de Lisboa. Sua peça Anjos são mulheres que escolheram a noite recebeu o Prêmio Funarte na XVII Bienal de Música Contemporânea do Rio de Janeiro. Em outubro de 2020, foi lançado o álbum Mer (Redshift Records), composições suas interpretadas por Luciane Cardassi. Publicou recentemente o seu primeiro livro de poemas, Tempo de atirar pedras e dançar (martelo casa editorial, Goiânia, 2021).