Coautor: Weiny César Freitas Pinto [1]
A compreensão do conceito de pulsão que vibra na teoria freudiana parece central para o entendimento do arcabouço teórico da psicanálise. Recorrendo à definição consensual de pulsão, nos deparamos com a ideia de um impulso, um estímulo inesperado que nos leva a agir de determinada maneira. Talvez, em razão dessa definição, o termo alemão Trieb – termo que o próprio Freud utilizou para designar pulsão – tenha sido traduzido para o português como “instinto” (Tavares, 2013). Sem adentrar no debate teórico e epistemológico sobre as divergências dessa posição, gostaríamos de destacar a importância desse conceito, que se refere a uma força presente em cada indivíduo de forma constante e não apenas momentânea ou pontual.
Esse princípio explicativo não tem importância somente para a psicanálise, mas para a psicologia em geral (Freud, 1915/2013), cujo entendimento permite abstrações na compreensão de como o indivíduo elabora suas escolhas diante da realidade. Isto é: como se constituem os desejos dos homens? Como a moção pulsional leva-nos à busca e à fruição de prazer? O conceito de pulsão e de qual(is) pulsão(ões) atua(m) em nós parece ser fundamental para respondermos a essas questões.
Em Além do princípio de prazer (1920), Freud leva adiante sua reflexão metapsicológica sobre o processo de regulação da vida anímica e elabora um “novo” dualismo pulsional. Até então, as pulsões existentes estavam ordenadas sob o domínio do princípio de prazer. Contrapondo-se a textos anteriores, a discussão centra-se para além do binômio prazer e desprazer. Essa obra, considerada como uma das mais complexas do autor austríaco, introduz mais sistematicamente os conceitos de pulsão de morte e pulsão de vida, que coexistem no organismo e regulam o aparelho anímico. A pulsão de morte seria uma força pulsional que elucida certos elementos cotidianos e fatídicos da nossa existência. Essa pressão exercida mobiliza no aparelho psíquico intensidades de energia dissociadas de qualquer conteúdo representacional que seja fonte e expressão de prazer. Ou seja, a pulsão de morte parece explicar, dentre outras coisas, a repetição constante de certas experiências de sofrimento, de culpa e de agressividade que sentimos recorrentemente.
Para compreender a atuação da pulsão de morte, Freud (1920/2020) utiliza análises empíricas e teorias da biologia que atestam, por exemplo, que toda célula, inevitavelmente, caminha para a morte. Nesses termos, o modus operandi que pressiona o aparelho psíquico à morte – sua autodestruição – não é algo singular do indivíduo humano, mas comum a toda vida orgânica existente. Grosso modo, a pulsão de morte motiva que o organismo retorne ao seu estado originário, ao inorgânico.
Esse processo ocorre por meio de uma pressão exercida pela pulsão de morte que não tem como objetivo o prazer ou a satisfação, mas a autoaniquilação. Em consequência dessa pressão, o organismo busca pela morte, mas não qualquer morte, não uma morte a qualquer custo: uma morte interna, natural. O que explica, aliás, a atuação da pulsão de vida no indivíduo, que deseja a preservação do organismo apenas porque almeja uma morte específica e por razões internas (Freud, 1920/2020). A vida é um serviçal da morte, dirá Freud.
Dessa forma, a existência da pulsão de morte se manifesta instaurando uma tensão com a pulsão de vida. O lugar da pulsão de morte no homem é, então, essencialmente, um lugar de tensão. Diante dessa concepção teleológica do ser orgânico, nos questionamos sobre o significado da vida. Como aceitar que a vida seja simplesmente um meio para a morte? Que a morte é inevitável, todos sabemos, mas somos por isso condenados a viver em busca dela?
Nessa perspectiva, o sentido da vida, quando analisado sob a ótica da pulsão de morte, parece-nos encaminhar para um ciclo de repetição de uma história fatalista que apenas traz dor e sofrimento, compulsivamente. O próprio Freud (1920/2020) reconhece que essa ideia traria grande resistência e que também poderia ser considerada controversa, pois “nos habituamos a ver na pulsão o fator que pressiona para a mudança e o desenvolvimento, e agora temos de reconhecer nela justamente o contrário, a expressão da natureza conservadora do ser vivo” (Freud, 1920/2020, p. 131).
De antemão, essa concepção da condição humana não nos levaria a uma análise simplista da vida? Diante da exploração do homem pelo homem e da manutenção da miséria humana no capitalismo, analisar o caminho da barbárie sob o domínio da pulsão de morte apontaria para a manutenção do status quo de um homem meramente animalesco, sem possibilidades de emancipação de uma agressividade inerente ao orgânico.
A recondução teleológica do orgânico ao inorgânico, a interrupção da vida pela morte, que não obstante vincula-se à dissolução da história da humanidade, seria então a única saída diante das perturbações a que estamos acometidos?
Felizmente, não há consenso sobre essa leitura determinista da realidade. Mesmo autores pós-freudianos criticaram essa dualidade pulsional e/ou propuseram outro princípio explicativo dessa força que nos constitui. De todo modo, a proposição de Freud (1920/2020) parece ter ainda grande poder explicativo, especialmente em tempos como o nosso, de ampliação de discursos de ódio e de violência disseminada.
Referências
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer [Jenseits des Lustprinzips]. Edição crítica bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2020.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Edição bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2013.
TAVARES, Pedro Heliodoro. Sobre a tradução do vocábulo Trieb. In: FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Edição bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2013. p. 73-90.
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa do Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O artigo é o quarto da segunda edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Psicanálise, filosofia e sexualidade, de Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/24/psicanalise-filosofia-e-sexualidade/.
- O pretexto da violência, de Amanda de Oliveira Valeiro, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/31/o-pretexto-da-violencia/.
- Hermenêutica e infodemia na era das fake news, de Pedro Henrique Cristaldo Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/08/07/hermeneutica-e-infodemia-na-era-das-fake-news/.