Com a colaboração de Luís Araujo Pereira
Nascida em Hidrolândia, no interior de Goiás, e morando atualmente na Suécia, a cantora e compositora Magda Machado, mais conhecida como Maguinha, lançou recentemente um novo disco, o álbum duplo Flores em Brasa, pelo selo japonês Sidecar Monkey Records. O trabalho é um deleite aos ouvidos, com a voz suave e cristalina de Maguinha sendo acompanhado por um banda formada por músicos japoneses, num diálogo riquíssimo e harmonioso entre sonoridades do Brasil e do Japão.
Aos 71 anos de idade, Maguinha é uma artista sem fronteiras, como costuma se autodenominar. Na década de 1960, ela começou sua carreira artística ainda em Goiás, participando de shows e festivais de música. Em 1966, recebeu o prêmio de melhor intérprete no 1º Festival Universitário, realizado em Goiânia. Na época, era a mais jovem integrante do Grupo Vanguarda de Goiás, fundado por Lia Dickie. Na década de 1970, por conta da repressão da ditadura militar no Brasil que atingiu duramente a sua família, partiu para um autoexílio nos Estados Unidos. Depois morou em Florença, São Francisco, Miami, Hong Kong e, agora, em Gotemburgo, na Suécia, com alguns intervalos de temporadas no Brasil.
Nesse percurso, Maguinha teve a oportunidade de atuar ao lado de grandes músicos, como Dom Um Romão, Larry Willys, Romero Lunambo, Samuel Elvachar. E ainda com Antonio Adolfo, Ricardo Leão, Bororó, Douglas Lora, Paulo de Carvalho, Ivo de Carvalho e Saulo Ferreira. No Japão, gravou com Ryoji Yamaguchi, Kiji, Kepel Kimura, e Atsushi Sano.Também no período em que viveu em Nova York, ela teve o privilégio de conviver com ninguém menos que João Gilberto.
Além de Flores em Brasa, Maguinha gravou os discos De Verde e de Luz, Earth and Sky, The Sound and The Feeling, Voyage to Vera Cruz e Terra. Voyage to Vera Cruz, gravado em parceria com o violonista Douglas Lora, foi premiado no Brazilian International Press Award 2008 como o mais notável CD de artista brasileiro lançado nos EUA naquele ano. Confira a seguir a entrevista que a artista concedeu a Ermira Cultura por e-mail, em que falou sobre o disco Flores em Brasa e sua trajetória musical.
Flores em Brasa é um álbum muito bem-produzido. Do projeto gráfico às canções, pode-se considerar um encontro entre Ocidente e Oriente. Como você pensou esse diálogo?
O meu diálogo com o Oriente começou quando era muito jovem. Tomei parte de um programa de estudos, onde convivi com gente do mundo inteiro. Viver em Nova York por 15 anos foi como visitar o planeta sem sair do lugar. Pode parecer estranho, mas a minha educação multicultural começou aos 10 anos quando fui estudar em Goiânia, convidada e hospedada pelo padrinho de minha mãe, que era polonês, e a casa era frequentada por europeus de várias procedências. No entanto, o que mais alargou os meus horizontes, dando-me maior consciência da cultura oriental, foi ter ido viver em Hong Kong, em 2009, onde ficamos por cinco anos. Ali fiz a música Terra, que tem muito influência oriental. A isto tudo, soma-se o fato de ter conhecido o Ryoji Yamaguchi em Miami, em 2008, e termos criado uma amizade baseada no amor pela música. Em Hong Kong, recebi dele uma gravação em que tocava Hideko Bushi, uma canção popular típica do norte do Japão. A música me emocionou com a sua leveza e cadência, em violão, shamisen, bandoneón, flauta, e uma finíssima percussão. Logo em seguida, passei um e-mail ao Ryoji com o mp3 da minha música Lembrança, em que eu cantava a cappella. Disse-lhe que, um dia, gostaria de gravá-la com ele, usando a mesma composição instrumental. Ele se entusiasmou. Assim, em 2009, foi plantada a semente de nossa colaboração. Devagarzinho fomos criando as condições para fazer um álbum. Nosso único critério era esse: queríamos que o disco fosse belo. Pode-se dizer que, neste caso, o Ocidente, ou seja, o Mundo Novo, levou suas melodias ao Oriente – e o mundo milenar do Oriente não só as recebeu embevecido, como também as interpretou com emoção. Flores em Brasa foi feito com grande sentimento, obedecendo unicamente a nossa intuição. Estávamos todos (músicos e outros colaboradores) apaixonados pela ideia de realizarmos o projeto que, desde a concepção até à mixagem, teve como base a colaboração entre Ryoji Yamaguchi e eu. O projeto gráfico foi outra importante expressão deste sentimento, desta vez com base na colaboração entre Ryoji Yamaguchi e a artista/designer Ryoko Uchida, que criou e executou a arte visual de maneira ímpar.
O álbum traz composições suas e clássicos da MPB, como Assum Preto. Como foi a seleção do repertório?
A semente do álbum foi Lembrança, música que fiz para relembrar meu irmão, Renato Pires Machado, falecido aos 29 anos. Em 11 de março de 2011, depois de ver na TV de Hong Kong, em tempo real, o mar invadir e ceifar milhares de vidas na costa no nordeste do Japão, fiz uma letra em inglês para Lembrança, à qual dei o nome de Remembrance, na tentativa de alcançar, em número maior, aqueles que perderam seus entes amados durante o tsunami. Era a única coisa que eu tinha para oferecer aos sobreviventes e, quem sabe, ajudá-los a mitigar a dor. Nós a apresentamos pela primeira vez no Sétimo Concerto Anual do Memorial do Tsunami em 11 de março de 1918, na Igreja Luterana de Musashino, em Suginami-Ku, em Tóquio, apinhada de sobreviventes do tsunami, amigos e parentes. Foi uma experiência única, transcendental, e também genuinamente humana. A partir de então, o nosso álbum – ainda sem nome – começou a virar realidade. Tinhamos dois shows marcados e, ao criar um repertório para a apresentação, descobrimos as nossas afinidades. Ryoji Yamaguchi, como eu, é um cidadão do mundo, tendo nascido em Israel e crescido e estudado em vários países onde o pai, diplomata japonês, havia trabalhado.. O diálogo entre nós aconteceu muito naturalmente. Fomos contando histórias, antigas e atuais, e encontramos nelas o mesmo sofrimento nas guerras, nas repressões e perseguições, e a mesma esperança no amor, na inclusão, na compreensão necessária para cuidar do planeta. As minhas músicas são profundamente brasileiras em suas raízes, e o Ryoji, como instrumentista, compositor, arranjador, fez uma leitura emocionada, sensível, e algumas faixas, como Janaína, Dona do Amazonas, Nuvem Calma, contaram com participação do multi-instrumentista Atsushi Sano, que em muito contribuiu com o seu talento e conhecimento musical, tocando violino, violoncelo, trompete, sax-soprano, flautas e adicionando percussões da África Ocidental. Aproveitamos a minha presença em Tóquio para gravar a voz em um bom número de músicas autorais, e de outras feitas em parceria com Renato Castelo, Douglas Lora e Ryoji Yamaguchi. Quisemos incluir uma música do violonista e compositor Douglas Lora, Tempestade. E não podia deixar de gravar as clássicas do cancioneiro brasileiro: Assum Preto, Ponta de Areia e Serenata do Adeus. Antes de acabar, tive a audácia de incluir Rosa de Hiroshima, com poesia de Vinicius de Moraes, música que desconheciam, e que abriu a ferida inominável perpetrada por violência e crueldade imensuráveis. O Ryoji Yamaguchi tocou os mais variados instrumentos de cordas, desde o violão clássico de 6 cordas, a viola de 12 cordas de aço, até o alaúde elétrico, de origem árabe, a viola do Cabo Verde, os instrumentos gregos, o bouzouki e a lira, e violões sintetizadores. Incluímos o shamisen, instrumento de cordas tradicional tocado pelo – KIJI – , mestre do instrumento japonês. Além da percussão brasileira do Kepel Kimura, algumas músicas tiveram percussão persa, do Leo Sai.
Entre a melodia e a letra, onde está a sua maior vocação?
Vocação nem sempre se traduz em talento, ou aptidão, e, no meu caso, é difícil separar as três coisas. A inspiração chega às vezes com uma melodia que pode aparecer a qualquer hora. Em geral, ela me vem quando um assunto ou evento me traz muitos sentimentos e as emoções são fortes e persistentes. Neste caso, poderia dizer que vêm juntas, pois a melodia já me vem com a letra, que depois vou lapidando e casando. Há também o caso das parcerias. Recebo uma letra ou um poema que me toca profundamente, ou de algum modo espelha meus sentimentos, ou vejo reflexos daquilo que considero minha identidade e procedência e, aí, respiro e sigo cantando o que leio. Nestes casos, é como se a letra tivesse já uma melodia para mim, e eu a descubro e lhe dou voz.
Como está a divulgação do disco? Você tem conseguido fazer shows, apesar da pandemia?
Devido às redes sociais na internet, é muito mais fácil divulgar a música do que o disco. A música, especialmente se apresentada em vídeo, atrai o acesso de um número bem maior de pessoas. Hoje em dia, as pessoas só clicam para escutar algo quando este algo é visualmente representado, como as crianças que precisam de ilustrações para as estórias. Esta é a tendência. Tenho aproveitado o tempo para divulgar uma ou outra faixa do disco com um vídeo, e o resultado é sempre positivo. Poucos CDs foram vendidos nas Américas e na Europa. O disco, no entanto, tem vendido no Japão porque ali a cultura do disco é forte. Os japoneses amam os discos, e os compram, especialmente se apresentados com uma estética apurada, como é o caso de Flores em Brasa. Assim que for possível, vamos fazer os shows programados e organizados pela agência de promoção no Japão, e isto dará impulso às vendas. Aqui na Suécia, o disco foi escutado pelo editor da maior e mais abrangente revista de música, Lira, que publicou uma resenha escrita por um crítico que se esforçou para entender por que uma cantora brasileira fez um disco com músicos japoneses. Apesar do estranhamento, disse esperar por outros discos da cantora em estilo tradicional, o que poderia ser considerado um elogio se não parecesse ser um desrespeito para com os músicos e com a totalidade do nosso trabalho.
Além da música, você tem outros projetos, como escrever um livro. Como está esse projeto? O que lhe dá mais prazer: cantar ou escrever?
O meu livro é autobiográfico, e então vamos fazer as contas. Setenta e um anos de vida, e as minhas primeiras lembranças são de quando eu tinha dois anos. Além disso, são tantas histórias para contar. Por exemplo: meu pai nos mudou de casa 19 vezes em 17 anos, por três cidades diferentes. Órfã de mãe aos 19 anos, irmão preso por dissidência política como terrorista, torturado e depois humilhado, pai desajuizado e desequilibrado sem diagnóstico psiquiátrico, com altos e baixos mais parecidos a precipícios, eu responsável pelos irmãos aos 19 anos… E depois que os jagunços degradaram o nosso lar tão amoroso, vivi ao redor do mundo, na América do Sul, América do Norte, Europa Ocidental, Escandinávia, e na Ásia, em Hong Kong. Salva duas vezes no curso da vida por famílias judias. Uma vez em Goiânia e outra vez em Nova York. Divorciada três vezes, casada quatro, histórias de amor impossíveis, dois filhos nascidos em países diferentes, que moram em países diferente, irmãos em países diferentes. Além disso, tive que aprender a história dos antepassados vindos de Minas para Goiás, e eram simpatizantes da Inconfidência Mineira. Este verão, decidi publicar a primeira parte. Falta pouco. Cantar me dá muito mais prazer do que escrever. Mas escrever é necessário para expurgar cortes profundos, expulsar fantasmas, lembrar quem fui e reviver dores e perdas para depois me permitir deixar que se evaporem. Além do mais, o livro é uma canção que continua e vai mudando de tom e de compasso sem pedir autorização. Nela, relembro as destinações da minha caminhada musical e me fortaleço na minha resiliência e nas minhas reinvenções. O livro se chama O Canto da Juriti.
Você nasceu em Hidrolândia, no interior de Goiás. O que permanece da menina do interior goiano na cantora “sem fronteiras” como você se define?
Hidrolândia ainda faz parte da minha construção como pessoa. Meu pai nos mudou para Piracanjuba antes que eu completasse 7 anos. Mas até então a minha base familiar foi sólida, e vivemos verdadeiramente felizes ao lado dos avós maternos e paternos, pais que se amavam, irmãozinhos amados, primas queridas, mangueiras e jabuticabeiras apinhadas de frutas maduras, mangabas do cerrado, catando gabiroba na saroba de manhã cedinho, indo pra fazenda na camionete com o tio maravilhoso, comendo vento, e depois tomando banho no córrego, e comendo os biscoitos das tias. Além disso, a grande vontade de crescer, de saber. Dentre as pessoas favoritas estavam a Marieta Telles Machado, a Beca, e os seus irmãos.. Foi em Hidrolândia que minha irmã Betúlia se casou com um capitão de navio sueco, na Igreja de Santo Antônio, o padroeiro. Eu voltei da Itália em 1992, a tempo de cantar em seu casamento. Minha mãe foi quem ensinou o Gilberto Mendonça Teles a ler, e o adorava, e tinha um retrato dele em cima de uma mesinha, junto com os nossos. E uma escola primária foi criada com o nome dela, a primeira normalista formada a lecionar no município, a Escola Natércia Pires do Prado. A cidade tem uma rua com o nome do meu avô, Joaquim Pires de Miranda, e uma rua com o nome de um tio, e outra rua com o nome de um primo. Periodicamente, visitamos o cemitério, e ali rezamos pelas almas dos antepassados. Eu saí de Hidrolândia, mas Hidrolândia não sai de mim.
“A vontade de cantar nunca morre”
Você morou nos Estados Unidos por muito tempo, vive agora na Europa e nos últimos anos estabeleceu um vínculo com o Japão. Como é que você foi construindo sua carreira nestas andanças pelo mundo?
Seria mais correto dizer que fui construindo a minha carreira em cada lugar onde cheguei, para depois desmontá-la ao partir. O bom da minha carreira é que ela é intimamente minha, não se desprende de mim, e a vontade de cantar nunca morre. Com o passar do tempo, foi ficando mais fácil, porque tinha mais bagagem para carregar. O que é o contrário das mudanças de quem muda móveis e porcelanas. Quase tudo que tenho eu carrego dentro da cabeça e do coração. Aprendi a simplificar a minha vida, e quase não consumo nada. Tenho sim, ainda, discos e livros, cadernos e retratos. Mas só os essenciais. Assim, chego leve, repito as mesmas ações iniciais de quem chega, me rodeio de músicos que me acolhem, canto aqui, canto acolá, faço músicas e, quando vejo, é hora de partir. A internet em muito me ajuda a carregar menos coisas, e me permite continuar a ter laços com as pessoas nos lugares de onde vim. Em Hong Kong, por exemplo, ao chegar, me apresentei como voluntária à Sociedade de Música de Câmara e ajudei a promover concertos e a receber membros e convidados. De modo que não só assistia às apresentações excepcionalmente belas, mas passei a conhecer compositores, pianistas, violistas, violinistas e contrabaixistas. Dentre esses, estavam aqueles com quem, antes de partir, gravei as três primeiras músicas do disco Terra, finalizado daí a poucos meses, em Brasília e Goiânia.
Você saiu do Brasil ainda muito jovem e teve sua família duramente perseguida pela ditadura militar. Estando há tanto tempo fora, como você vê o Brasil nesse momento?
A perseguição à minha família não foi feita por ideólogos. Foi feita por gente tosca, embrutecida, ignorante, parasitas de um sistema ditatorial. Não tinham ideias próprias. Não sabiam nem mesmo a razão pela qual invadiam casas, tiravam as pessoas de suas camas antes do amanhecer, ameaçavam ao avançar com seus corpos musculosos, mas barrigudos, no espaço pessoal de uma mãe, de uma filha, para nos intimidar. E a gente podia ver a satisfação nos olhos deles ao levar um menino magrelo de 20 anos para um lugar desconhecido, para bater nele à vontade. Naquele tempo, nem tivemos o tempo para nos indignarmos, e nem a força, pois a garra da ditadura estrangulava e ficamos sem voz. No desterro, é que eu fui sentir o trauma, a indignação e depois a raiva. Se eu cheguei a ver um Brasil esperançoso em 1980, quando voltei depois de 10 anos, e se depois vi um Brasil orgulhoso das suas conquistas, e admirei a sociedade mais justa que se construía com salários mais altos, e me senti animada com o fato de que meu país era agora visto no mundo como uma das potências porque tínhamos todos os recursos naturais para sermos independentes e soberanos, e não devíamos nada a ninguém, e além disso havia programas sociais para melhorar a vida das pessoas pobres, imagine a minha agitação e angústia ao ver o Mal novamente ressurgir, levantando sua cabeça de serpente!
Como são os seus vínculos hoje com Goiás?
Tenho relações familiares e amizades imorredouras em Goiás. Os vínculos persistem. Goiás está no meu DNA, no sangue, na memória. O DF também. Sonho sempre em voltar e estar perto do meu irmão e outros pessoas amadas. Pelo menos quero voltar a passar meses a fio, a cada ano. Meu próximo disco será gravado aí.
Você vem de uma geração artística que marcou época na cultura brasileira. Você acompanha as novas gerações de músicos brasileiros? Como vê o atual cenário artístico-cultural no Brasil?
Continuo a pensar que o Brasil é uma fonte inesgotável de criatividade e talento. É o nosso modo de ser que o faz assim. Os artistas da minha geração ainda alumiam o caminho de uma parte grande dos artistas de hoje, lhes servem de alicerce. Mas o novo é sempre o novo e tem imensa força. Ninguém pode impedir a continuação da vida ou da arte. Tenho a certeza de que tempos melhores virão, mas é necessário impedir que este governo canalha e desprezível continue a pisotear e a ferir a nossa dignidade para que as artes tenham alento e possam de novo nos fortalecer.
Disco: Flores em Brasa
Artista: Maguinha Machado
Selo: Sidecar Monkey Records
Mais informações: www.maguinha.com
Confira abaixo dois vídeos de Maguinha, interpretando canções de Flores em Brasa:
Janaína
https://www.youtube.com/watch?v=v7Tiqq9Rhdo
Nuvem Calma
Teaser do álbum