Coautores: Caio Padovan [1] e Weiny César Freitas Pinto[2]
Neste ensaio filosófico, destaco a música Eminência Parda, do músico brasileiro Emicida, para analisar questões relativas ao racismo a partir de uma reflexão sobre Freud (2020), a respeito da possível superação de um complexo de inferioridade provocado por este fato social (o racismo), questionando assim o caráter “compulsivo” do racismo estrutural que, por vezes, parece assumir a forma de um comportamento fóbico.
A narrativa histórica sobre o negro é repleta de estereótipos, concebida do ponto de vista do homem branco europeu, que acabou situando o negro nas camadas mais inferiores da pirâmide social vigente. Dito isso, seria interessante analisar até que ponto a psique alienada do negro – e do branco – leva a esse sistema de dominação racial.
A inferiorização do negro acompanha a supervalorização do branco europeu. O negro vê-se imerso em seu desejo de ser branco, pois vive em uma sociedade que justifica o seu complexo de inferioridade, uma sociedade que contribui para a manutenção desse complexo na medida em que sustenta a divisão de seres humanos em raça e, para além disso, estabelece socialmente superioridade de uma raça em relação à outra. Isto posto, percebe-se que, de certa forma, a sociedade induz no negro um sentimento de inadequação, podendo contribuir para o estabelecimento de um estado neurótico muito particular.
Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud compreende as neuroses traumáticas inicialmente como consequência, em nível psíquico, de uma ruptura da camada de proteção do aparelho psíquico contra estímulos externos. Essa neurose se estabelece em função de um intenso conflito psíquico. Esse conflito resulta, por um lado, do ambiente externo, social, no qual o indivíduo está inserido e, por outro, da maneira como o indivíduo reage a esse mesmo ambiente. Ao refletir sobre esses aspectos, talvez possamos afirmar um tipo de neurose específica no negro, cujo desenvolvimento pode estar diretamente associado ao contexto social, especialmente hostil à negritude, no qual ele está inserido.
Analisando as raízes sociais das vivências do negro e do branco, o branco nunca se sentiu inferiorizado em razão da sua cor. Aliás, muito pelo contrário, o branco é considerado superior. Enquanto, por outro lado, o negro é uma invenção do branco, que não existe fora de uma racionalidade já marcada pela exploração colonial, essencialmente racista.
Como discutido em nosso último ensaio, Rap: Critica e Resistência (http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/), a condenação do negro à escravidão por mais de 300 anos deturpou a identidade negra do país, um país onde ainda hoje se questiona a sua legitimidade e o seu espaço, além da cultura negra brasileira, e, também, onde os modos de expressão dessa cultura são violentamente diminuídos, sendo o protagonismo do negro ainda visto com certo estranhamento pela sociedade como um todo.
Essa realidade é muito bem exemplificada no videoclipe da canção Eminência Parda, no qual assistimos a uma família negra que sai para comemorar a conquista acadêmica de sua filha em um restaurante “rico” da região. O que parecia ser apenas uma comemoração qualquer causou incômodo nos demais clientes. Todos os brancos associaram o passeio da família a um evento anormal, o que fica claro por meio de suas expressões de espanto e inconformidade.
O vídeo se divide entre o que é real, retratando um jantar em família em meio a outras pessoas, e o que se passa na cabeça dos outros clientes. Em suas fantasias, eles veem a família negra como pessoas sujas, como assaltantes e até escravos. Vitória, a personagem que está comemorando a sua inclusão no ensino superior, é associada por homens brancos de meia-idade à figura de uma garota de programa. O fim é trágico, apesar de corriqueiro: corpos negros estirados no chão. Como diz a canção: “Mas preto não chora, mano, levanta. Não implora, penhora a bandeira branca”.
Qual é exatamente a problemática que pretendo pensar? A escuta de um negro não é diferente daquela de qualquer outro sujeito, ela não apresenta nenhuma especificidade. Ao mesmo tempo, somos levados a admitir que existe uma particularidade e que as situações de preconceito e de discriminação vividas historicamente pelos negros podem justificá-la. A cor da pele do negro determina, por exemplo, a maneira como ele será interpelado, revistado ou agredido por policiais, aliás, a agressão sofrida pelo negro por parte da polícia sempre é, como vemos frequentemente, extrema. Trata-se de um dado da realidade. As estatísticas que fazem um recorte racial apontam para isso, como no caso da Kathlen Romeu, jovem negra e periférica, que estava grávida de 4 meses e foi baleada no chão da favela pela polícia. Os assassinatos e os crimes, como tráfico de drogas e furto, principalmente, são a segunda causa de morte no Brasil, acometendo, sobretudo a população periférica (Folha de S. Paulo, 2021). A cor preta no Brasil foi feita para ser abatida.
Em Além do Princípio de Prazer, Freud afirma que acontecimentos marcados por um forte choque traumático podem provocar enorme perturbação no funcionamento energético do organismo, colocando em movimento diferentes mecanismos de defesa, produzindo assim sintomas neuróticos. Podemos dizer que sintomas desse tipo estarão sempre, de uma forma ou de outra, atravessados por aspectos do social. Esses eventos marcam profundamente a vida psíquica do indivíduo, que é afetado diretamente pela realidade histórica.
Por meio da transferência, recurso clínico psicanalítico, o indivíduo tende a reviver situações afetivas e dolorosas de seu passado. Encontramos nessas revivências aspectos da história individual e da história coletiva do sujeito. Todos nós somos detentores de um nome, de uma história que é singular. Ao mesmo tempo, nos vemos inseridos como indivíduos na História de uma região, de um país e de uma cultura. Somos transmissores e depositários. Nesses termos, cada indivíduo, seja ele negro ou não, carrega, por exemplo, as marcas do escravismo de nossa cultura brasileira.
O preto, quando compreende e encara a pseudoidentidade e a irrealidade que foi lhe imposta pelo branco, consegue se libertar de significantes e suposições por ele assimiladas, e até então tomadas como suas. A partir daí, dessa libertação, é que começa a verdadeira aprendizagem. No entanto, como sabemos, a realidade tende sempre a se revelar resistente e refratária a tais anseios.
Nesse sentido, e assim concluímos, caberia a interrogação: qual seria a saída para o complexo de inferioridade do negro? (“complexo” entendido aqui como “neurose” causada pelo racismo). Acredito poder encontrá-la na desconstrução da subjetividade social, capaz de agir em prol da desalienação do negro – e do branco –, e da libertação de estereótipos e do sentimento de inferioridade negra que insiste em repetir-se compulsivamente. Mais uma vez, cito a canção: “Não tem dor que perdurará, Nem o teu ódio perturbará, A missão é recuperar, cooperar e empoderar, Já foram muitos anos na retranca”.
Referências
BARATTO, Geselda. A descoberta do inconsciente e o percurso histórico de sua elaboração, [s. l.], 30 out. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/f79DMNx9LYLj5NwQxHTyktf/?lang=pt . Acesso em: 1 jun. 2021.
EMICIDA. “Eminência parda”. Laboratório Fantasma, SP. 2019. 5:44. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fXHpmuPJ4Ks. Acesso em 28/05/2021.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. São Paulo: Editora Autêntica, 2020.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
MORTA aos 24 anos e grávida, Kathlen Romeu sonhava em construir família e saiu da favela por medo da violência. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 jun. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/morta-aos-24-anos-e-gravida-kathlen-romeu-sonhava-em-construir-familia-e-saiu-da-favela-por-medo-da-violencia.shtml . Acesso em: 12 jun. 2021.
SOARES, Thalyne; SOARES, Isabella; DAMASCENO, Carlos; FREITAS PINTO, Weiny César. Rap: Crítica e Resistência. Ermira Cultura. 6 fev. 2021. Disponível em: http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/ . Acesso em: 30 jun. 2021.
[1] Professor de Psicologia Clínica na Universidade Paul Valéry, Montpellier 3. Doutor em Psicopatologia e Psicanálise pela Université de Paris. Atua na área de história e filosofia da psicanálise. Pesquisador ligado ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUCPR. E-mail: caiopadovanss@gmail.com
[2] Professor do Curso de Filosofia e do Programa do Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo é o sexto e último da segunda edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Psicanálise, filosofia e sexualidade, de Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/24/psicanalise-filosofia-e-sexualidade/.
- O pretexto da violência, de Amanda de Oliveira Valeiro, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/31/o-pretexto-da-violencia/.
- Hermenêutica e infodemia na era das fake news, de Pedro Henrique Cristaldo Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/08/07/hermeneutica-e-infodemia-na-era-das-fake-news/.
- O lugar da pulsão de morte no homem, de Jennifer Aline Zanela, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/08/14/o-lugar-da-pulsao-de-morte-no-homem/.
- A origem da sexualidade: quando Freud recorre a Platão, de Thiago Moura Castro, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/08/21/a-origem-da-sexualidade-quando-freud-recorre-a-platao/