[Curadoria: Luís Araujo Pereira / Seleção, tradução e perfil: Patricia Peterle, professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)]
[1]
Atollo
Un sole che con oziosi giri
sedusse e divorò l’ombra del mondo
e crebbe sui giorni e sui mesi
già stringe il muro ed il cortile
scruta le differenze d’ago
della sabbia dei piccoli castelli
e brilla da mille bandiere
da scudi e da porte
dagli angoli dei morti.
Tra quei precari monumenti,
io là vi collocai, fragili Italie
i cui minuti segmenti
avido sale stinse,
la brace là s’indovina
dell’insetto e del libro,
là tra giochi vuoti e pericoli
al silenzio si appoggiano le clausole
della mia memoria infelice
e monti decrepiti affidano
alla sabbia insensibili sfaceli,
la sabbia senza parsimonia
colma i volti e i sorrisi
spegne l’oro dei suoni.
Già il sole penetra per le
cieche gallerie delle finestre
sugge e scinde gli ultimi
legami della mia sostanza.
Atol
Um sol que com ociosos rodeios
seduziu e devorou a sombra do mundo
e cresceu nos dias e nos meses
já abraça o muro e o quintal
sonda as diferenças da agulha
da areia dos pequenos castelos
e brilha das tantas bandeiras
de escudos e portas
das esquinas dos mortos.
Nesses precários monumentos,
eu lá as coloquei, frágeis Itálias
cujos pequenos segmentos
sal voraz desbotou,
a brasa lá se adivinha
do inseto e do livro,
lá entre jogos vazios e perigos
no silêncio se apoiam as cláusulas
da minha memória infeliz
e montes caducos confiam
à areia insensíveis esfacelos,
a areia sem parcimônia
enche os rostos e os sorrisos
apaga o ouro dos sons.
Já o sol penetra por entre as
cegas galerias das janelas
suga e cinde os últimos
elos da minha substância.
***
[2]
Primavera di Santa Augusta
Alla pioggia dei monti, dei castelli,
le bandiere cadono in sfacelo;
leggero come scheletro
m’avventuro in questo giorno
che selvoso si versa sul mondo.
Dietro cieche evasioni di ghiacci
e i filtri densi delle paludi,
nell’azzurro defunto delle valanghe
arrestate dal tuo silenzio
arrestate agl’inizi del mio terrore,
vacillano le scale dell’inverno;
per un’altra fronte della pioggia
primavera dolce
tuona sui monti
La tua vicenda avvampa
ancora, discendi in tumulto
dalle madide chiome dei paesi
coi torrenti del cielo e delle strade,
e snudi abissi sotto le mura
e sotto i treni
immoti davanti alla sera.
Le voci della vera
età chiara ti fanno
ma gli occhi restano spenti
su questa terra che di te s’estenua
e dal tuo volto vinto da morte
il mio conosco.
Primavera de Santa Augusta
Na chuva das montanhas, dos castelos,
as bandeiras cedem em esfacelo;
aéreo como esqueleto
me aventuro nesse dia
que selvoso se espalha no mundo.
Por trás de cegas evasões de gelos
e os filtros densos dos pântanos,
no azul defunto das avalanches
detidas pelo teu silêncio
detidas no início do meu terror,
vacilam as escadas do inverno;
por uma outra frente da chuva
primavera doce
troa nos montes
A tua história inda
inflama, desces em tumulto
das copas encharcadas das aldeias
com torrentes do céu e das ruas,
e despes abismos sob os muros
e sob os trens
imóveis diante da noite.
As vozes da real
idade alva te fazem
mas olhos ficam sem luz
nessa terra que de ti se extenua
e por teu rosto vencido de morte
o meu conheço.
***
[3]
Ormai
Ormai la primula e il calore
ai piedi e il verde acume del mondo
I tappeti scoperti
le logge vibrate dal vento ed il sole
tranquillo baco di spinosi boschi;
il mio male lontano, la sete distinta
come un’altra vita nel petto
Qui non resta che cingersi intorno il paesaggio
qui volgere le spalle.
Agora já
Já a prímula e o calor
nos pés e o verde acume do mundo
Os tapetes expostos
as loggias vibradas pelo vento e o sol
tranquilo verme de espinhentos bosques;
o meu mal distante, a sede diferente
como uma outra vida no peito
Aqui não resta senão se cingir à paisagem
aqui dar as costas
***
[4]
Batte il fabbro
Batte il fabbro tra notte e monte,
forma l’officina profonda;
e gli strumenti lungo le pareti
pendono, sopravvissuti al fuoco.
D’ossa e di lame glorioso monte
sopra tutte le case,
lupi e cervi di monte nelle corti
fiutano e brucano vetro.
Gremite di neve sono le bocche
e le porte dei paesi,
scivola sotto le strade l’acqua
dei fanciulli defunti.
Pericolanti tenebre, di terra
si vuotano; inginocchiati
caddero i bovi; mentre dai balconi
gli abitanti si sporgono come oro.
Bate o ferreiro
Bate o ferreiro entre noite e monte,
forma a oficina profunda;
as ferramentas correndo as paredes
pendem, sobreviventes ao fogo.
De ossos e lâminas glorioso monte
sobre todas as casas,
lobos e cervos de monte nas cortes
farejam e pastam vidro.
Apinhadas de neve são as bocas
e as portas das aldeias,
escorre sob as ruas a água
das crianças falecidas.
Periclitantes tenebras, de terra
se esvaziam; ajoelhados
caíram os bois; enquanto dos balcões
os habitantes se mostram como ouro.
***
[5]
Grido sul lago
Il grido d’uccello dell’inverno
arrestò i quadranti degli orologi,
carri e macchine
resero fango la via.
Costruzioni ed asili
della più sensibile rovina
si spalancano al lago
gelato di sassi,
intorno al monte s’interrano
bovi motori e ruote,
il duro avello si scava la sera.
Chiamate all’altra riva
in altro tempo
volarono lungi le barche,
sui tavoli i bicchieri rovesciati
versano cera,
precipita la scala
verso inferni di neve.
Palafitte avvizziscono
al divieto fosco dell’oriente,
la terra offesa è chiusa
tra i padiglioni colmi della festa
e il passo di metallo
dei portici e degli archi
che sprofondano il lago.
Tra le sfatte reti del vento
moltitudini estreme
si disperdono in luci.
Grito no lago
O grito de pássaro do inverno
parou os quadrantes dos relógios,
carroças e carros
enlamearam a rua.
Construções e abrigos
da mais sensível ruína
se escancaram pro lago
gelado de pedras,
ao redor do monte se enterram
bois motores e rodas,
a dura cova escava-se à noite.
Chamados à outra margem
em outro tempo
voaram longe os barcos,
sobre as mesas os copos derrubados,
derramam cera,
precipita a escada
rumo a infernos de neve.
Palafitas murcham
na interdição fosca do oriente,
a terra lesa está fechada
entre os pavilhões repletos da festa
e o passo de metal
dos pórticos e arcos
que afundam o lago.
Nas redes desfeitas do vento
extremas multidões
se dispersam em luzes.
Perfil
Quantas facetas não poderiam ser atribuídas a Andrea Zanzotto (1921-2011), para muitos considerado como um dos grandes herdeiros de Eugenio Montale. Sua produção, iniciada com a publicação de Dietro il paesaggio [Por trás da paisagem], em 1951, pode ser vista sob diferentes perspectivas: desde uma forte relação com a tradição até seu caráter mais radical e experimental, passando pelo hermetismo, por certa atmosfera bucólica, sem deixar de tratar das atrocidades da Primeira e da Segunda Guerras, do Vietnã, da destruição da natureza e da grande mudança e reconfiguração da paisagem da região do Veneto. Na verdade, o que chama a atenção na incrível e variada produção de Andrea Zanzotto é sua capacidade de ser sempre ele mesmo e sempre outro, variações, amplitudes e deslocamentos (inclusive na própria linguagem) que são articulados a partir de um espaço muito bem definido e delimitado. Esse espaço corresponde à sua cidade natal, Pieve di Soligo, no interior da região do Veneto, bem perto das Dolomitas. Apesar de ter saído fisicamente pouco desse espaço (uma estada na Suíça e a convocação para a Segunda Guerra Mundial), é a partir dele que Andrea Zanzotto observa e se relaciona com tudo aquilo que está ao seu redor, indo muito além das fronteiras territoriais, por meio das pinceladas surrealistas e pela metamorfose e pela simbiose entre paisagem e humano. Em Dietro il paesaggio, o poeta já indica uma perspectiva muito peculiar para escrutar o que está ao seu redor. De fato, o que é importante ressaltar aqui é, justamente, esse espaço que é escavado pelo poeta “por trás” da “paisagem”, que é um elemento central em toda a sua trajetória. A presença humana nos poemas desse livro, que segue o ritmo das estações, é praticamente nula, tudo é percebido por meio dos inúmeros elementos que compõem e dão vida à paisagem, do verme ao sol, passando pela flor da dália, pelo bicho-da-seda, pelas plantações de trigo, pelo granizo, e pelos inúmeros detalhes que os olhos mais do que atentos e pacientes vão captando e ali se reconhecendo. O olhar crítico e preciso já aparece, por exemplo, no poema Atol, que dá o título a uma das seções de Dietro il paesaggio. A expressão “frágeis Itálias” aponta para uma precariedade, um descompasso, que se desdobra nos demais livros do poeta italiano. A devastação e a total modificação da paisagem, e claro do homem que a habita, em nome de um progresso desenfreado e avassalador, chamado por Pasolini poucos anos depois de “mutação antropológica”, são um dos cernes da potente poesia zanzottiana.
Lindíssimos. Pena que só eram 5. Li, li de novo e sigo com vontade de ler.mais.