Agora que a Olimpíada de 2020 acabou, que Tóquio mexeu na cronologia, aderindo ao tempo reversível do inconsciente, me animei a mexer no meu baú de espantos. Quem me animou foi a Fadinha do skate, a menina nordestina, de nome Rayssa Leal, frágil e forte como um graveto. Pascal dizia que o homem não é mais do que um caniço, mas um caniço pensante. Só que a Fadinha é um graveto voante, a-voante. Ela é de Imperatriz do Maranhão e acionou minha lembrança. Lá estive em novembro de 2014, Rayssa deveria ter uns seis, sete anos. Não a conheci então. Fui a convite de Monica Brito, em nome da Fazenda Freudiana de Goiânia, ajudar a consolidar uma instituição psicanalítica que também era uma menina e que mais tarde se ligaria ao Corpo Freudiano. Também incentivei Marco Antonio Coutinho Jorge a abrir uma seção do Corpo Freudiano em Goiânia. Em Imperatriz, minha ajuda foi na forma de palestras e, passado tanto tempo, dei uma olhada no que escrevi para a introdução da teoria psicanalítica pela via dos quatro discursos de Lacan. Foi o seguinte.
Lacan define discurso como aquilo que faz laço social. Os quatro discursos – o do mestre, o do universitário, o do histérico e o do psicanalista – articulam uma teoria da cultura e têm a vantagem de ultrapassar a oposição errônea entre uma psicanálise do sujeito individual e uma psicanálise do coletivo.
Trata-se da valorização de uma oposição inclusiva entre indivíduo e sociedade. Os quatro discursos foram estabelecidos no Seminário, Livro 17, “O avesso da psicanálise”, ministrado em 1969-1970, num momento histórico de crise manifesta na revolta estudantil de maio de 68 na França. O Seminário de Lacan constitui-se numa resposta às questões suscitadas desde então.
Os discursos são “laços sociais” e “atos”. São laços sociais em torno da relação de quatro termos representados por quatro letras e que ocupam quatro lugares. As letras são S1, S2, $ e a. S1 é o significante-mestre, a marca de um sujeito. S2 é o saber. $, que se lê S barrado, é o sujeito dividido por efeito do significante. O “objeto pequeno a” é causa do desejo e também indicativo de um gozo a mais, o mais-gozar. Esses termos, representados por quatro letras, fazem parte da álgebra lacaniana, que se inspira livremente na matemática para formalizar a psicanálise e promover sua transmissão. Os quatro termos ocupam os lugares de “agente”, “Outro”, “produção” e “verdade”. A barra _ separa os lugares e as letras. As letras, em psicanálise, não se representam a si mesmas, não têm uma relação biunívoca consigo mesmas. Assim, a letra A não representa a letra A. Para um matemático, a fórmula que indica identidade A=A indica que o que vem antes do sinal de igual é o mesmo que vem depois. Mas, para o psicanalista, não. A letra que vem antes do sinal de igual não é a mesma que a ele se segue. No mínimo, decorreu um tempo. A fórmula indica o que é idêntico e algo que é diferente, pois a repetição introduz uma diferença.
Para o psicanalista, a repetição de um significante já implica que são dois significantes. Entre um significante e outro, existe um hiato: o sujeito. A psicanálise não renega a função do sujeito e, sim, a introduz no campo científico. Abre-se, assim, uma grande questão para o futuro: já não se trata de perguntar se a psicanálise é ou não uma ciência, mas, diz Lacan, trata-se de saber o que seria uma ciência que incluísse a psicanálise, que levasse em conta os seus achados. Quanto a nós, falamos de um lugar teórico que pode ser descrito como valorizando a psicanálise como ciência conjectural.
Os quatro discursos descrevem a ocupação das quatro letras em quatro lugares assim distribuídos:
Mestre: o discurso do Mestre indica a prática de “governar”: tem a ver com o “poder”.
Universitário:
O discurso do Universitário indica a prática de “educar”: o “saber”.
Histérico:
O discurso do Histérico indica a prática de “fazer desejar”: o “gozo”.
Psicanalista:
O discurso do Psicanalista indica a prática de “psicanalisar”: o “sujeito”.
Os quatro discursos indicam os três impossíveis formulados por Freud: governar, educar e psicanalisar. Lacan acrescenta outro impossível: o de fazer desejar. Há sempre um resto.
O discurso do Mestre indica a relação de um “agente” com o “outro” (parceiro) a partir de uma “verdade” pela qual o “agente” se autoriza a agir e espera que o “outro” (comandado) “produza”.
Governante: autoriza-se de sua “subjetividade” e espera obter do governado a “produção” de “objetos de gozo”. O “saber”, S2, quem tem é o escravo. O “senhor”, o “dono”, o “mestre” se apropria do saber do escravo, desqualificando-o.
Educador: autoriza-se do “autor”, da “bibliografia”, para “impor” o saber ao outro “objetivado” (estudante), produzindo um sujeito dividido, revoltado, contestador.
Histérica: autoriza-se de seu “gozo” para levar o “outro” à condição de “mestre”, a fim de que ele “produza” um “saber” sobre sua “verdade sexual”.
Analista: autoriza-se do “saber” do “inconsciente” para obter do “sujeito” a sua “singularidade”, a sua “diferença”, sua “marca”.
Os quatro discursos determinam quatro formas diferentes de atos:
Ato governamental: a lei (agente)
Ato educativo: o saber
Ato histérico: o sintoma
Ato analítico: o objeto a
O sintoma e o objeto a caracterizam os atos.
A lei: o que caracteriza o governo não é o que os políticos dizem, mas sim seus atos e, nesse caso, dizer não é um fazer, no âmbito da “fala vazia”, sem consequências, nem compromisso com a verdade; o outro é tratado como escravo, trabalhador, operário.
O saber: o ato de educar é o tratamento do outro objetivado pelo saber, o que pode ocorrer em qualquer lugar, até mesmo no consultório do analista; o consultório não define, nem ordena o discurso, as palavras pronunciadas, como fala vazia, até que as palavras sejam ordenadas em discurso pelo dispositivo analítico; o que conta, o que promove a passagem da fala vazia de um sujeito para sua fala plena, que indica o reconhecimento da verdade parcial do seu desejo, é o ato analítico, isto é, a interpretação (mesmo que seja o “corte” da sessão, o que terá valor interpretativo).
O sintoma: o ato histérico é fazer desejar, algo vivido por todos: cortejar, seduzir, atrair, tudo isso faz laço social; o ato é histérico quando produz o desejo no Outro; o outro é tratado como mestre para estimular o desejo do sujeito histérico.
O objeto a: o ato analítico promove a desidentificação dos ideais do Outro e a libertação do sujeito do poder mortífero das palavras. O outro é tratado como sujeito.
O mal-estar contemporâneo pode ser pensado pela psicanálise como um produto dos discursos dominantes na civilização: o do mestre, o do universitário e o do capitalista (uma variante do discurso do mestre). O discurso do analista, por negar a verdade absoluta, se opondo aos donos da verdade, e à ilusão da consciência e da razão “imperial” que pretendem dizer a última palavra, reconhecendo os limites do saber pelo caráter de incognoscibilidade do inconsciente, denuncia os efeitos do gozo mortífero na exigência superegoica do goza! a qualquer preço, a todo custo, e sem parar, indicando, ao mesmo tempo, a possibilidade criativa, o prazer na satisfação parcial do desejo, fazendo girar os outros discursos.
Discurso do mestre: é o laço civilizador, o que exige a renúncia da satisfação pulsional, impõe a recusa do gozo, que retorna sob a forma do supereu, do qual o sentimento de culpa do sujeito é o índice que se manifesta no olhar que vigia e na voz que critica. Lembrar que o olhar e a voz são objeto a, para Lacan. O discurso do mestre, na sua variante atual, o discurso do capitalista, produz os dejetos da civilização (o que escapa à simbolização) sob a forma de mais-de-gozar. A civilização, por isso, é pensada por Lacan como sendo uma “cloaca máxima” pelo que produz.
A clínica e os quatro discursos
Por que será que não se reedita o livro A ordem médica/Poder e impotência do discurso médico, de Jean Clavreul, discípulo de Lacan? Será mais uma do chamado “ato médico”? O livro foi editado pela Brasiliense em 1983, e desde então não soube que tivesse uma segunda edição. Em homenagem à qualidade crítica e didática dessa obra, recorro à leitura de Clavreul, entre outras, para indicar uma articulação entre a teoria dos quatro discursos e a clínica psicanalítica.
O discurso do mestre: é o discurso primeiro, fundante. Lembrar que, para o bebê, a mãe está nesse lugar de mestre, passando significantes, palavras para o infans, o que ainda não fala. O discurso médico está mais próximo dele. Quando se tem uma doença, o médico vê nela alguns signos, alguns sinais. Os signos são portadores de uma informação sobre a doença. Mas esta informação só pode ter uma significação se houver alguém para recolhê-la. Um signo de ausculta não informa nada, nem ninguém, até que o médico possa fazer alguma coisa com ele. O signo, meramente um sinal, só se torna informação porque o médico o coloca em relação com outros signos, cujo conjunto constitui uma síndrome, que, por sua vez, pode ser atribuída a uma doença.
O que importa aqui não é o “olhar médico” e, sim, o fato de que o médico conhece uma ordem articulada desses signos. O médico recolhe o máximo de signos e os agrupa numa ordem. É assim que o médico ordena os signos numa cadeia significante. Graças à existência do discurso médico, ele constitui os signos, os sinais, os indícios em significantes e, de sua ordenação, ele extrai uma significação, que é a existência de uma doença. A etapa do diagnóstico é um ato de mestria.
A audácia de tal ato, o diagnóstico, nos escapa porque é cotidiana, nem reparamos mais nela. Ela é mais evidente quando o médico recolhe signos para uma doença ainda não identificada, quando o conjunto de signos recolhidos deve conduzir a uma interpretação original. Só que esse ato de descoberta se torna mais fácil pelo fato de que se sabe que ele é possível, pois já foi realizado por outros médicos para outras doenças.
Não é somente o saber constituído, já repertoriado, que permite ao pesquisador o ousado ato de mestria, mas sim o fato de que tal empreendimento já foi tentado, e com êxito, o fato de que um discurso médico é possível, pois existe uma ordem simbólica. Não podemos não simbolizar. O homem é filho da linguagem. Um animal simbólico. Foi o símbolo que o tornou homem. É graças ao símbolo que ele se pode dizer “homem”, ou “médico”, ou “doente”.
A ordem simbólica – o grande Outro, o tesouro dos significantes – é constituída por uma série, a chamada cadeia significante. A definição de significante: um significante é o que representa um sujeito para outro significante. A definição de signo: um signo é o que representa alguma coisa para alguém (que saiba lê-la). A cadeia significante S1…S2…Sn pode ser escrita resumidamente assim: S1 → S2, é o chamado “par significante”. Quando a mãe ensina o filho a falar, passando-lhe fonemas, sinais acústicos, palavras, em resumo significantes, ela está encarnando o grande Outro. Há uma maneira espirituosa de mostrar isso em inglês. Ela se deve a Bruce Fink, que assim a ilustra: mOther. Eis o poder do significante.
O significante S1 é o primeiro da série. Já foi chamado de significante-mestre. Ele não é apenas um significante, mas designa também um conjunto de significantes. Já foi chamado também de significante sê-lo (em francês, maître, m’être, um jogo de palavras de Lacan com os sons de mestre, ser, e me, de mim), em suma, o selo de fábrica, a minha marca.
No discurso do mestre, o lugar do agente é ocupado pelo significante S1. O que determina o êxito do discurso do mestre é que ele advém da subjetividade do “autor”. A pretensa objetividade do cientista é a retirada da subjetividade do autor. Não é que a subjetividade não esteja aí, mas que ela não tem nenhuma importância para que um texto seja inteligível. Por exemplo: o aforismo “A Terra gira” não fica menos verdadeiro como enunciado, mesmo que Galileu tenha sido condenado pela Inquisição ou que tenha feito uma retratação para não parar na fogueira. Sua subjetividade não importa para a compreensão do texto. Os produtos pasteurizados mal nos lembram, se tanto, a subjetividade de Pasteur.
O discurso do mestre retira sua força do fato de se sustentar independentemente da subjetividade daquele que o enuncia, como daquele que o escuta. A retirada da subjetividade no discurso do mestre se escreve colocando o $ sob a barra, para mostrar que o sujeito não está no discurso manifesto. Debaixo da barra é também uma maneira de dizer que está recalcado:
O produto do discurso do mestre é a constituição de um objeto: no caso do discurso médico, a doença, ou melhor, o diagnóstico. O objeto vem ocupar o lugar do objeto a, como lugar do desconhecido do desejo. É por aí que se estabelece o gozo do qual o discurso científico é portador, na medida em que constitui uma ordem graças à qual o objeto aparece. Mas o objeto só aparece enquanto subsumido pelos significantes do discurso, abaixo de S2, que aqui resume o saber, a ordem significante:
Aparecendo na ordem do discurso, o objeto desaparece na sua relação direta com $ (sujeito barrado, dividido por efeito do significante), isto é, enquanto objeto da fantasia. Com isso, o discurso do mestre está a serviço do recalque para o próprio mestre. O objeto a desaparece como causa do desejo, reaparecendo como achado do discurso. Por isso, Lacan pôde dizer: “O discurso do mestre é o único a tornar impossível esta espécie de articulação que designamos alhures como fantasia, na medida que é a relação do “a” com a divisão do Sujeito” (O avesso da psicanálise, p. 101). Para recordar, a fórmula da fantasia é $ <> a, que se lê sujeito barrado desejo de objeto. Toda descoberta científica, entre elas o diagnóstico, suprime a divisão do sujeito. O desejo do médico por seu objeto é unificador (dos médicos entre si e do médico para consigo mesmo).
O discurso do universitário: é o giro do discurso do mestre no sentido anti-horário. Nele, a dominante é o saber, S2, escrito no lugar do agente. Privilegia a cadeia significante S2, isto é, o discurso constituído como saber. É com ele que se lida na universidade, onde se ensina o saber coletado junto aos mestres. Na universidade, são os professores que leem os mestres, ou supostamente o fazem. Na maioria das vezes, os próprios professores só leem documentos de segunda mão. A função da universidade é a de recolher e transmitir o saber, compreendido como informação organizada, capitalizada, cumulativa, isto é, o saber sabido. O saber é transmitido apenas parcialmente, após ter sofrido necessariamente uma degradação. A universidade luta contra o que é uma entropia do saber, no sentido que se fala de uma entropia de energia.
Trata-se de recolher os significantes S2, S3, S4 … entre si e só admitir um significante novo se este toma lugar na ordem de um discurso já constituído. De certo modo, a universidade constitui, portanto, obstáculo ao surgimento de significantes novos se forem destruidores da ordem estabelecida. O saber constituído faz obstáculo à consideração do que não se inscreve nesse saber (do mesmo modo que o saber médico fez obstáculo ao sintoma da histérica, considerado fingimento, ou, depreciativamente, piti).
O que Thomas Kuhn afirma sobre as Sociedades Científicas como guardiães dos paradigmas constituídos visa ao discurso universitário. O significante S2 ocupando o lugar de agente, em primeiro lugar, é sob a barra que deverá se colocar o significante S1, uma vez que não é ele que é levado em consideração:
O saber sabido, já constituído, considerado enquanto tal, e não em sua relação com os significantes que o constituem, justifica-se: há uma ligação direta com os bens de gozo, e o gozo dos bens que o saber obtém. O outro, o estudante, é “objetivado”, ocupa o lugar de objeto de gozo. A ciência capitalizada em saber prolonga-se nos bens de gozo que obtém, e isso se escreve assim: S2 → a. A universidade se prolonga nos técnicos e bens de consumo que resultam do saber. Distinguem-se, portanto, o discurso do mestre como produtor do saber e o discurso do universitário como detentor desse saber.
O saber médico, enquanto constituído, saber sabido, se justifica pelas indicações terapêuticas que fornece: no essencial, sob a forma do medicamento que é uma “medicina”.
E qual é a “produção” do saber constituído, o “efeito do saber sabido”? A resposta é: a divisão do sujeito. Todo saber nos constitui como divididos. É o doente que o saber médico divide, separando-o em seus dois elementos: o homem e a doença. É também a partir da existência de um saber constituído que se configura a posição da histérica. A histérica questiona o mestre, questiona o universitário, questiona o saber sabido. A fórmula do discurso universitário assim se escreve:
O discurso da histérica: é o que coloca a divisão do sujeito ($) em primeiro lugar, é o discurso do analisante. É sob a forma da patologia que nos aparece de maneira exemplar a questão do sujeito. Até aqui, a questão do sujeito esteve sob a cadeia significante criada pelo discurso do mestre, e capitalizada como um bem e um benefício, como saber, no discurso universitário.
O discurso médico é o discurso científico típico. É ele que tem a incidência mais certa sobre a vida cotidiana. A tal ponto que se constitui como um “discurso jurídico”, com suas prescrições e proibições, “medicalizando” toda a existência. Historicamente, a histeria foi reconhecida pelo que é “em relação ao saber médico”. A histeria é o que pode se assemelhar a todas as doenças sem nunca ser uma delas. Foi o que se chamou de “plasticidade” do sintoma histérico. Por esse fato, a histeria escapa do saber constituído. Todo tratamento pode curá-la milagrosamente. Mas também os tratamentos mais experimentados podem fracassar completamente. Seu polimorfismo extremo lhe dá unidade: os sintomas não remetem ao discurso médico, mas ao próprio sujeito.
É exatamente em virtude da prevalência do discurso médico que a histérica se apresenta como “doente”! Quando eram os teólogos que detinham o discurso do saber sobre o homem, eram eles que se viam interpelados pelas “possuídas”. Os exorcismos tinham a mesma eficácia que os atuais tratamentos médicos sobre as histéricas: imprevisível. O diabo se metia nisso e muitas vezes era o exorcista que saía vencido do combate. Era pela possuída que, por sua vez, ele se fazia possuir.
Do lado da histeria, a mulher. Do lado do saber, o homem. A estatística constata, nas não explica. Isso não quer dizer, porém, que os homens não sofram de histeria. Clavreul diz que a velha teoria do útero móvel (a palavra “histeria” vem do grego “hystera”, “matriz”, “útero”), que ocasionaria toda espécie de doenças chamadas histéricas, não é tão má. Haveria um “útero escondido”, e ainda por cima passeador, nunca se saberia se ele não se evadiu para o lugar do corpo de que a histérica se queixa. O homem de ciência revela o visível, corresponde ao visível do seu pênis. Ao invisível do útero corresponde a conivência da mulher com as forças obscuras, diz Clavreul. Lembra que “testemunho” vem do grego “testes”, do mesmo radical para “testículo”, e pergunta: o que pode “atestar” uma mulher que, por definição, não o tem? Este seria o juízo que se fazia do homem de saber.
O que faz a histérica? Ela significa-se a si mesma em sua subjetividade através dos sintomas que ocupam o lugar de S1: $ → S1. Estes sintomas, que ela produz aos montes, têm um estatuto particular em relação à cadeia significante, na medida em que eles a solicitam, sem nunca se estabelecer uma ligação articulada entre S1 e S2 pela qual se constitui o discurso do mestre. Por isso, as histéricas são teóricas.
Essa afirmação tem vários sentidos: a) uma conversão somática coloca um problema teórico; b) o sentido em que Freud fala das teorias sexuais da criança, que as histéricas ressaltam; c) o sentido em que Lacan fala da situação histérica em que ele está colocado ao fazer seu seminário; d) o sentido em que Kepler estuda paralelamente a astronomia e o sonho, mostrando que não quer desconhecer o lugar da subjetividade do cientista.
O lugar da histérica é aquele em que o destino do seu discurso é mais problemático. Ele visa produzir saber, visa constituir uma cadeia significante, por isso é que S2 está sob S1, como efeito de uma busca, que se segue à tentativa da histérica de encontrar sua marca voltando-se para o lugar de mestre.
Mas o discurso da histérica não é reconhecido pelo saber sabido. É considerado como remetendo-a a ela mesma, a sua subjetividade, a sua loucura, a essa fogueira onde também se encontram os homens de ciência, ou pelo menos seus livros.
Ocorre que a emergência dos significantes tem por função “mascarar sua fantasia”, sua relação com o objeto a. Por isso, o objeto está colocado sob a barra, debaixo de $. Ao se apresentar como sujeito dividido, “patológico”, proliferando sintomas, na clínica, ele ocupa o lugar de agente, daquele que comanda. O significante-mestre S1 ocupa o lugar do outro. Assim, a histérica busca um mestre para fazer com que trabalhe para ela, para dominá-lo. O preço desse dispositivo é o recalque do objeto a, colocado sob a barra. Esse a recalcado leva o sujeito a falar do corpo. A separação entre o sujeito e seu objeto de desejo, sob a barra, é indicadora na clínica de um corte que a histérica promove entre a mente e o corpo. É também indicadora da alternância de sua posição sublime (a “lei do coração” de Hegel, “a bela alma”, o “não tenho nada com isso”) que se pretende separada de um mundo vil, separada do sexo, ou, ao contrário, a ninfomania sem entrave, mas sem alma, o corpo sem mente. Ou a mente sem corpo, ou o corpo sem mente. A fórmula do discurso da histérica:
O discurso do analista: é o que vem por último na cultura. É o único que fornece articulações em que o desejo se inscreve. Na posição de agente, está o objeto a, como causa de desejo, situado em sua relação com o sujeito: a → $. O analisante chega “objetivado”, colocando o analista no lugar de sujeito-suposto-saber. Esta é a operação da transferência, para Lacan. O analista se coloca no lugar de objeto causa de desejo, para que o analisante passe à condição de sujeito desejante. A psicanálise é subjetivante. Esse discurso mostra, de modo patente, acima da barra, a função da fantasia na relação entre o sujeito e o objeto a, de acordo com a fórmula da fantasia $ <> a.
O objeto a é o objeto desde sempre perdido, segundo Freud. A mãe encarna para a criança o lugar desse objeto, mas está interditada. O incesto não é apenas proibido, é impossível. A interdição desvia o sujeito do objeto primeiro do seu desejo, a mãe (ainda que ela seja um mero substituto), para que ele busque outro objeto substitutivo. Freud mostrou como a criança, seu neto, com um jogo do carretel e da linguagem (Fort–Da), conseguiu renunciar à mãe ausente, substituindo-a e superando seu sofrimento pela assunção ativa desse mesmo sofrimento, dramatizando-o, como se ele fosse não mais uma vítima, um mero objeto, mas um sujeito que controla a situação. O carretel, ou as palavras, ou qualquer outro objeto podem assim ocupar transitoriamente o lugar do objeto a. O objeto se articula com a fantasia do sujeito. O gurizinho atirava para além do seu berço o carretel amarrado numa linha e balbuciava Fort! (Longe!) e depois ele mesmo, puxando o carretel para junto de si, emitia o som Da! (Aqui, perto!).
Autorizando-se de um saber, o saber do inconsciente, colocado sob a barra, no lugar da verdade, o analista se oferece como semblante, como objeto a, no lugar do agente (mas na posição de um “não agir positivo”, como ensinou Lacan), convocando um sujeito dividido pela linguagem (significante e significado) e pela instância psíquica (consciente-inconsciente) a produzir sua marca, a dizer qual é a sua, a sua diferença, bem dizendo seu sintoma e atravessando sua fantasia. Isto pode ser escrito pela fórmula:
Mas haveria um quinto discurso? Uma única vez, em Milão, em 1972, Lacan forneceu a escritura do discurso do capitalista:
E não voltou mais ao assunto. Trata-se de um hápax, de algo que ocorre uma única vez. O discurso do capitalista é entendido como o discurso do mestre contemporâneo. Esse discurso produziria sujeitos voltados exclusivamente para objetos de consumo, isto é, sujeitos objetivados. Assim como há um imperativo ditado pelo supereu contemporâneo, expresso na fórmula de Goza!, esse sujeitos se reduziriam a objeto de consumo, escravizados da moda, submetidos a um pragmatismo acrítico.
O saber científico-tecnológico, a serviço do mestre contemporâneo, exclui a falta e o desejo. O discurso do capitalista rejeita a castração, rejeita a verdade psicanalítica que, desde Freud, nos aponta para a incompletude, a verdade parcial do desejo, a inscrição na diferença sexual. O discurso capitalista não teria qualquer lei, sua “lei” seria um simulacro. Entre os efeitos sociais desse discurso, destacam-se a segregação, a idolatria do “mercado” (tratado como um ente misterioso e caprichoso, como se não fosse constituído por gente, pessoas, agentes), a exclusão do sujeito pela ciência (classificada por alguns autores como “louca”), a produção de “gadgets”, de objetos descartáveis, tornando igualmente “descartáveis” os parceiros amorosos, reduzidos a objetos de consumo rápido, o aumento de uma cultura do autismo, do onanismo, do voyeurismo, da ilusão de completude, da perda de ideais, da quebra de vínculos, inclusive os vínculos sociais, aumento da cultura da bulimia, da obesidade, do sedentarismo, da anorexia, do tédio, da pedofilia e da depressão.
É esse o quadro que se coloca diante do psicanalista. E foi assim que conclui minha fala em Imperatriz. Hoje, muita coisa mudou. No ano 2000, assisti a um debate entre o psicanalista René Major e o filósofo Jacques Derrida. O psicanalista não acreditava que se pudesse fazer análise pela internet. Já o filósofo não via nisso problema algum. Veio a pandemia, tivemos todos de nos adaptar às condições de vida e de trabalho on-line. Qual será o futuro da psicanálise?