A loucura talvez viesse daquele calor pesado e estafante, talvez ainda daquele sol que se introduzia tórrido pela janela, talvez ainda do domingo, dia propício ao tédio, talvez ainda, quem sabe?, dele mesmo: sempre haveria uma razão ou origem, perto ou longe, dentro ou fora; mas, seja qual for a sua procedência, a loucura estaria insinuando-se, aqui e ali, para envolver completamente a sua vida amarga. Solitária. Às vezes, incompreensível. Porém, a vida que ainda é possível, apesar das intimidações. Apesar mesmo da insensatez. A de todos os dias, que repousava, há muito tempo, como um peso sobre a sua cabeça.
Ele acendeu um cigarro. Depois, escolheu um disco e, antes de se decidir em colocá-lo no aparelho, viu a revista cuja página era ocupada por uma foto insuperável de Dominique Sanda.
Dominique Sanda. Dominique Sanda.
Uma sensação de esmorecimento em todo o seu corpo fez com que a terra tremesse aos seus pés. A foto sugeria uma espécie de Éden perdido, de existência superior, longe dos dias iguais e monótonos. De primavera no Jardin des Plantes. Os olhos da atriz – uma deusa saída dos contos míticos – tinham uma serena e suave sedução, os seus lábios então pareciam sussurrar “Mon amour, mon amour” – e tudo, aquela passagem de uma vida profana para uma vida sagrada, provocava-lhe a impressão, quase real, de que se reunia aos primeiros amantes do Paraíso, antes do castigo.
Deslocando-se, escapando ao impacto arrebatador da foto, viu a paisagem além da janela: do outro lado, depois dos jardins, na rua que contornava a casa, uma mendiga comia bananas, e o sol sobre a sua boca vermelha talvez anunciasse duas horas. Ou três. Ou nenhuma. E interrompendo a influência daquelas duas visões, uma irreal e alucinatória, outra verdadeira e urbana, ele se dirige enfim ao aparelho. Os passos, trôpegos, hesitantes, arrastaram-no ao seu objetivo, molusco oscilante.
Talvez o domingo não morresse lá fora. Talvez os pombos vagabundos não viessem mais recolher as migalhas atiradas sobre o parapeito da janela. Talvez uma ordem misteriosa congelasse o tempo num eterno agora e impedisse o alçar do voo dos pássaros. Talvez nem mesmo a loucura existisse. Talvez Vera se esquecesse de voltar para casa. Talvez a palavra “talvez” não indicasse modalidade de dúvida.
Eram cantos gregorianos. A sala, num estalo, foi invadida por uma atmosfera mística, própria dos conventos. Ele se sentiu suspenso, sem o menor contato com as coisas banais e contaminadas. Deus, inclusive, parecia existir em algum lugar dentro da sala. Uma brisa vinda de longe umedeceu a sua pele. Com os olhos fechados, o corpo esparramado sem controle sobre o sofá, ele esqueceu o seu nome, a sua cidade, as pessoas que odiava, os seus compromissos, as denominações cruéis, Vera, principalmente Vera – e pediu que aquele momento ali nunca mais se acabasse. O domingo tinha perdido o seu volume opressor. Dominique Sanda o beijava. Sentiu que tinha o domingo em suas mãos. E adorava aquela sensação única. Parecia que os antigos mosteiros o abençoavam.
Mas não: eu sou um domingo que continua na segunda-feira, cuja semana começa somente para repetir-se. Eu sou o amante distraído que se esquece de que o amor é sempre a história de um domínio. Antes de me pertencer, eu fui possuído por sombras que enredam até uma aranha – e agora, subjugado e ferido, eu sou aquele que espera.
A música, com todo seu poder catártico de anulação do real, transportou-o para longe, além da sala, além dos corredores, além da casa, além de todas as suas sensações. Aos poucos, percebeu que estava se desligando de si mesmo, como arrebatado pelos efeitos de uma droga, o seu espírito começava a desligar-se do seu corpo: assim a sala começou a distanciar-se cada vez mais, as suas formas e os seus objetos foram diminuindo como num lento zoom – no momento em que ele, curioso, olhou para trás, para tudo que ficava junto à sua velha forma, e ainda teve tempo de reconhecer um homem gordo e inútil, covarde e vencido, grotescamente esparramado sobre o sofá. Contemplando aquela cena insólita, ele se sentiu purificado ao separar-se daquele corpo que lhe pertencera, e, como nunca se deve dizer adeus aos monstros, continuou a sua viagem rumo ao improvável.
Os passos na escada, porém. Esses passos duros que têm sempre o mesmo peso e o mesmo ritmo nas escadas ressonantes, esse ruído ameaçador de alguém subindo, degrau por degrau, esse barulho que provoca o medo, a loucura que se anuncia por meio desses passos. A porta se abre. E, pah!, Vera, com o seu corpo atlético, aparece na sala, como se fosse uma adolescente vindo da aula de ginástica. O seu desdém poderia ser embrulhado em papel jornal.
As perguntas de Vera tinham sempre a força de uma intimidação. Se eu pudesse respondê-la, se eu tivesse a coragem suficiente para romper de uma vez por todas com a ordem da casa, eu reagiria assim e não escolheria palavras:
– Enfie toda a sua fortuna no rabo! Ou diria, então, palavras mais agressivas e grosseiras. Isso se eu desse conta de continuar… Mas esse não sou eu.
A solidão é uma voz sem destinatário. Eu olho para essa mulher sem nenhum sentimento melhor do que aquele criado pelo hábito da convivência, às vezes acaricio o seu corpo quando então ela permite que eu a veja nua e excitada, visto as roupas que ela escolhe, leio as revistas que ela compra, respiro o ar que ela autoriza. Às vezes, como um objeto decorativo, sou obrigado a acompanhá-la em suas intermináveis atividades sociais, obedeço às suas ordens, ouço os seus conselhos, aceito as suas imposições e restrições – e apesar de sua dominação, de seus gritos, de sua fúria, de suas humilhações contra o meu corpo, não me sinto capaz de reagir: tudo se passa como se eu tivesse vivido eternamente sob o seu controle, como se eu fosse um inválido, como se o seu poder fosse indestrutível, como se eu fosse inútil, covarde, fraco – e a revolta e a indignação fossem desconhecidos. Mas sei que eu não fui sempre assim. Mas eu sei, como todo mundo, que um dia pode ser melhor que outro.
O domingo, longo e vazio, deprimia-o mais do que os outros dias. A casa, com os seus grandes jardins, os seus corredores, as suas escadas de madeira, era dominada por um grande silêncio, silêncio dos lugares ermos, evocação dos ambientes frios e mortos – apesar da delicadeza dos móveis, dos tapetes, dos quadros, dos objetos incomuns.
Nesse dia, mais intensamente do que em outra ocasião, ele se sentia abandonado e perdido. Era por isso que se refugiava na biblioteca, procurando se prender a alguma coisa rica de significação, quando os discos eram então escolhidos com incomum interesse, a música provocando o desejo do delírio e, graças a esse estímulo, ele podia respirar, colocar em sequência os seus pensamentos, controlar a ordem que sustentava a casa.
Os passos de Vera, porém, desequilibravam tudo. Os seus passos tinham qualquer coisa de aterrador. Os seus passos lembravam, não sabia por qual estranha analogia, os sons de um martelo enfiando pregos num condenado. Os passos de Vera soavam como uma trilha sonora de filme de terror.
Para escapar às suas censuras e humilhações, procurava outro refúgio. Nos jardins, numa área coberta de vegetações, um banco previamente escolhido o abrigaria, isolado e protegido. Ali, naquela sombria defesa contra o mundo que o destruía, ele permaneceria até o final de todos os seus sonhos se não fossem os apelos de algum parente de Vera, de uma visita ou de algum amigo da família para o convívio com a casa, as suas convenções, a sua elegância afetada, os grandes jantares, as reuniões noturnas, as longas discussões sobre negócios e empreendimentos – todas as coisas enfim típicas das pessoas que viviam na casa, aquelas que não suportava, essas coisas que recusava como determinantes de sua vida, essas pessoas fúteis, ocas, medíocres.
Como um intruso, sentava-se em frente aos seus talheres e comia a porção que lhe era destinada. Durante a refeição, sentindo-se vigiado e analisado, evitava olhar diretamente para os convidados. Ao final, como sempre ocorria em qualquer uma das reuniões, dizendo-se indisposto, pedia licença e se retirava, avisando que iria dar um passeio pelos jardins. Os seus passos agora não eram trêmulos: ele sabia para onde se dirigia. A salvação pela quietude das plantas.
Vendo-o sentado naquele banco, recolhido à sua indiferença pelos outros espaços, os empregados diziam entre si: “O patrão é um homem infeliz.” Ali, ele adotava às vezes a aparência de alguém que esperava um grande acontecimento. Talvez ele esperasse o momento seguinte de retornar aos seus discos. Talvez ele não esperasse nada. Talvez. Dominique Sanda – a mulher imprevisível, cujo beijo ansiava.
A loucura. O lugar dos loucos é no hospício. Domingo, dia favorável às depressões sutis. Por que a mendiga não comia maçãs? A loucura, essa invenção para justificar os mais insensatos comportamentos. Vera, você sabia que é a sua classe que financia as guerras? A repressão? A violência? Dominique Sanda: um rosto clássico e lânguido que sugere a mesma paz dos rostos das madonas de Botticelli. Nesse banco, nesses jardins, eu sou vegetal: à sombra da natureza, tornei-me também natureza, veja como ficaram verdes as minhas mãos, veja como os insetos me visitam. Inútil procurar fora da loucura outra classificação: os que recusam a ordem do seu mundo, Vera, são doentes mentais. Eu sou doente mental, logo recuso. A minha doença chama-se tédio. Um homem gordo lutando contra as suas origens e os seus fracassos.
As distinções da loucura: a cada louco um tipo de camisa de força. Eu recuso os talheres de prata, os vinhos falsificados, os emblemas da arrogância. Daqui a pouco, virão convidar-me para eu ocupar o meu posto à mesa. Mas eu me sinto definitivamente preso a esse banco. “O patrão é um homem doente e infeliz” – eles murmuram. Mas a minha vingança será a recusa dessa afirmação. O lodo do banco passará para as minhas pernas. Serei natureza. Vinde, palavra que tudo encobre. Verde, a cor das plantas nos jardins. A hera e os insetos. A hora dos insensatos. Eles acreditam que a loucura começa quando se articula frases sem sentido. Mas eles não sabem diferenciar a lucidez da demência. A revolta da indiferença. Os sonhos dos pesadelos. Os cantos gregorianos: você seria capaz de ouvi-los? Os pombos na moldura da janela. Recuso o estéril e as ninharias, os programas que controlam o cotidiano, as telas do pensamento. O domingo me interna no silêncio da casa, mas eu posso sempre escapar-lhe na segunda-feira. Recusarei os sorrisos envenenados. Recusarei a ordem, intocável, que domina essas pessoas. Que domina a casa. Os passos na escada serão apenas passos na escada: recusarei também a analogia com o terror. Recusarei o meu lugar à mesa. A ordem do seu mundo, Vera. A fresta da porta, que sugere um mundo pulsando lá fora.
A noite desce completamente. Eles na casa sorriem, comemoram com gargalhadas e gritos; logo mais, virão buscar-me para eu ser manipulado como eles querem, como uma marionete, como um bicho sem reação. Para decorar os esplendores e as convenções da casa. Para cumprir o meu papel ao lado de Vera. Para ouvir as suas mentiras. Para ser igual a eles. Mas eu faço parte do banco e dos jardins. Mas eu não conheço ninguém na casa. Mas eu só entendo a linguagem que a hera tece nos muros. Mas agora desconheço a resignação.
A loucura é uma dispersão. Eles acreditam que a loucura começa quando se desobedece. Quando se pede para dizer “chuva” e a gente diz “sombra”. Ainda chegará o momento em que um homem gordo deverá renascer enquanto todos eles continuarão mortos, à espera da última pá. O homem-baleia, o homem infeliz, o homem pirado – não é assim que eles me chamam? Quando minha voz se impor diante de todos eles, as minhas frases de revolta e sonho ramificar-se-ão, nesse momento, sobre as heras. Um dia ainda lhes mostrarei que a vingança é uma sala de madeira explodindo, uma geladeira frost free se desmanchando como flocos de isopor. Eles confundem a lucidez com a loucura, a morte com o renascimento, a noite com o dia, o domingo com a segunda-feira, os cantos gregorianos com o mórbido, os pombos com a peste: na realidade, a loucura mora é na casa, a loucura habita cada um deles, como tatuagens irremovíveis.
Daqui, verei o tempo e as nuvens, os insetos e a lua, as cores que as trevas às vezes escondem. Talvez, com alguma sorte, eu possa até ver uma estrela cadente, uma dessas que esticam o seu risco no céu. E assim a noite será um espetáculo do jardim, e, por meio das ramagens tenras e altas, assistirei ao fim do domingo. A um homem gordo e inútil morrer. Ao dia seguinte, a madrugada com o seu encanto transitório.
Aurora, nome do que traz o novo, palavra dos que esperam outro dia, dos que renascem junto com a primeira luz da manhã, orbis mundi.
Muito bom.. Gosto muito da simplicidade com que escreve o autor. Da vontade continuar lendo. Rsssss