[Curadoria de Luís Araujo Pereira / Seleção e perfil: Fátima Pinheiro, poeta e psicanalista]
[1]
Um solo de silêncio para rede e peixe
O grande anjo noturno abraça
a noite lavada pela tempestade
(Regar o peixe é mais delicado
do que tecer rede para o luar)
Na mínima greta do penhasco
apenas um solo de silêncio.
(Regar a rede é mais profundo
do que insistir que a sombra vire peixe)
No silêncio respira o grande anjo noturno
Noite desembaraça fios de seda.
(Tecer a rede é melhor
do que rezar pelo peixe à beira do rio)
Estrela infiltra-se na greta do penhasco.
O silêncio profundo é em si movimento.
Brisa em Bizâncio, 2002
***
[2]
Fulgor de um lado, cristal do outro
Cindir o fulgor do cristal?
Não! O que cinde é o cristal,
e o fulgor aguarda no cais,
ou no cais cristal decepado em dois.
Cindir o cristal, nunca o fulgor.
Cristal é cristal, mesmo sem fulgor.
Fulgor tem nome: brevíssimo
como o poema-cristal.
Brisa em Bizâncio, 2002
***
[3]
Autorretrato em forma de concha
Este céu é para ser visto de joelhos.
Ao som do minério sagrado quase me invado,
duplo de estrela que serei.
Desenho mínimo de rios, 1997
***
[4]
Rosas
Não aos naufrágios, não à morte
que tinge de nada nossos lençóis.
Sim aos sóis, e há tantos
e se aprofundam em nossas águas.
Não fui sonhado para a eternidade.
Disso eu sei e com certa amargura.
Fui sonhado para ser sonhador
De certa matéria absurda e diamante.
Disso eu nada sei – de estar aqui.
E quase me iludo com esse chumaço
de rosas nas vértebras, rosas nunca criadas
por mim – mim – a mais absurda
das carnes e que arde paraísa chama
e sonha em ser nunca a morte, mas as rosas.
Diário Estrangeiro, Prêmio Cruz e Sousa de Literatura – 1986
[5]
O cacto das restingas
essas miçangas que teceste
na corda bamba de um x oracular:
miçangas mais silenciosas
que o gulf stream sombrio:
lunas que hablan com dunas
sobre o quê mesmo?:
sobre canastras de peixes
hablan las lunas ou cravam na língua
o tanino do mangue-bravo:
cada palavra de tua delicadeza
é um risco no portulano do areal,
onde abandonas as harmonias
de teu último íntimo y sanga ferina:
na jam de tua voz-cálix, a sereia entoa
a neblina vivificante da sirinx de Pã
no ilíaco dos náufragos:
tua escritura reacende no escrínio
a pétala e o cacto das restingas:
tua voz é a pele antiga dos abismos:
é a mandíbula renga das iguanas
que devora na penumbra
os ariticuns maduros:
com chuvas nas crinas tua voz é
um pingo no i,
um sopro inaudível:
um cântaro
Inédito, 2020
Perfil
Fernando José Karl (Joinville – SC, 1961- 2021) deixou a agronomia para se dedicar à literatura, tornando-se um dos poetas catarinenses mais premiados, com mais de 18 livros publicados. Diário estrangeiro, Travesseiro de pedra e O livro perdido de Baroque Marina foram vencedores em edições diferentes do Prêmio Cruz e Sousa. Com Teares de pedra, venceu o Prêmio da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 2002. O romance Graco, o ventríloquo foi vencedor do Anderle (2017) e foi traduzido para a editora alemã Suhrkamp Verlag. Escreveu o romance Hynverno (2021), que será publicado ainda este ano pela editora Letra d´água (SC). Vivia em Curitiba, trabalhou como artista visual e foi roteirista dos filmes As mortes de Lucana (2012) e o Aquário de Antígona (2016). Coordenou a oficina de Literatura FLUXUS e foi editor-assistente do jornal cultural paranaense Nicolau, editado por Wilson Bueno. Também trabalhou no suplemento cultural Anexo, do jornal A Notícia (PR). Realizou exposição de 20 desenhos a nanquim na Biblioteca Municipal de Curitiba (1990). Outras exposições com trabalhos seus foram: a coletiva Os bárbaros, no Instituto Goethe, em Curitiba/PR (1991); a exposição Dez Grafismos Marítimos de Fernando José Karl, no Museu do Mar, em São Francisco do Sul (SC, 1994), e, em 1997, a exposição individual Balneário Badgerd, na Galeria Lascaux, em Joinville.