Os dois sintomas ocorreram em sequência, um após o outro – e cada um deles, pelo que antecipavam como caos, indicava artérias em pane e curto-circuito na visão. Sintomas são sintomas e como tais devem ser considerados, mesmo que essa tautologia seja desprezada por um demiurgo das exatidões.
Antes do primeiro evento que o desnortearia daí em diante, havia uma estrela para a qual gostava de olhar nas noites em que a Via Láctea expunha grandiosa os seus grandes e pequenos brilhos no firmamento. Entre tantas, escolhera a que tinha a menor emissão de luz – uma luz minúscula, tão inspiradora quanto tênue.
Era a estrela da sua vida, o único alento que lhe restava, e ele a velava com o seu olhar fiel nas noites de céu aberto. E foi nela que pensou quando foi atingido pela isquemia que o deixou imobilizado do lado esquerdo.
Em seguida, como se tivesse adquirido um novo corpo, descobriu-se com o tato insensível, os gestos marcados por garatujas e andar claudicante. Para perturbar mais ainda o seu espírito, havia a inútil compaixão da faxineira que, pela atenção desmedida, enervava-o todos os dias. Tudo isso colocava-o em face de uma aprendizagem que tinha de considerar não só a perda dos movimentos mas também a procura do impropério que expressasse a sua indignação diante da incapacitação severa.
Se quisermos datá-lo, esse episódio aconteceu no mês de setembro, numa tarde de calor insuportável, no início de uma primavera confusa em que as chuvas chegaram com estardalhaço acompanhadas de raios flamejantes. Muitos deles feriram a cidade em diversos locais e provinham da fornalha de um Zeus raivoso, mas não menos justo.
Algum tempo depois, num novembro febril, sentiu o segundo sintoma, cuja fúria não foi menos devastadora. Num átimo, sem complacência, gárgulas lançaram-se contra os seus olhos, vindas de uma torre gótica escondida em seu interior – e o agrediram no que tinha de mais íntegro.
Os seus olhos – que sempre foram preservados para admirar as formas raras e lindas – viram uma cortina espessa cair de repente para vedá-los do espetáculo que é a natureza. Num desfecho impiedoso, esse véu era irmão da noite e trouxe sombras e amargura, pois retirava a estrela eleita do seu alcance.
Como ninguém sabe direito o que é este nosso mundo, os dois sintomas jogaram-no de vez num buraco, cujo diâmetro abrigava no seu fundo um monstro que devorava almas. Como elas são tantas e frágeis, o homem não cansava de estraçalhá-las com o seu apetite desdenhoso, a fim de se nutrir.
Esses dois ataques, os piores que sofrera até então, desde a depressão que sobreviera à decisão da família de interná-lo ali para ser esquecido, como se encerra um objeto num guarda-volume e depois joga-se a chave fora, não só reduziram a sua esperança de retornar à casa onde sempre vivera como demonstravam afinal a sepultura na qual seria encerrado o seu ânimo.
E assim, dia após dia, vivia naquele quarto diminuto, à espera do próximo colapso. Apesar de tudo, de todas as suas limitações, restava-lhe a escuridão dentro da qual poderia continuar pensando na estrela que escolhera como luz de seus dias. De resto, ninguém poderia removê-la de sua memória, sobretudo quando, devido à sua cegueira irremediável, tornara agora impossível revê-la em seu brilho eterno – estrela da vida inteira.
Parabéns Luís, reflete bem os saltos e retalhos da vida diária com profundidade poética e filosófica! Obrigada!