O ano de 2021 foi o ano da vacina. Certamente poderemos nos lembrar disso por gerações e um sopro de esperança nos inundou. Sim, não há dúvida da importância deste milagre que a medicina nos brindou. Pudemos voltar a abraçar nossos queridos, matar as saudades, tentar retornar a certa normalidade. Quem sobreviveu a esta terrível pandemia e ao pior governo de toda a história da República – que fez de um tudo para ampliar nossa tragédia – precisa agradecer, de acordo com sua fé, esse privilégio. É uma prova de resiliência, de que temos a condição de suportar os piores e mais insanos obstáculos para continuarmos salvos.
Nesse processo doloroso, em que o Brasil percorreu o ano mais letal de sua história, com cenas terríveis, quando chegamos a quase 4 mil mortos pela doença por dia, tivemos a perda de muitas, muitas vidas, numa quantidade que é inaceitável e sempre será. A essas perdas somam-se outras, que minaram boa parte da esperança que a vacina nos trouxe. É a perda da perspectiva de ver um país melhor, que aprende com seus erros e tenta trilhar outros caminhos que nos desviem das catástrofes anunciadas às quais, parece, já nos acostumamos a vivenciar. Houve também a perda de pessoas que, mesmo sobreviventes à própria ignorância, morreram um pouco para quem não aceita discursos autoritários, negacionistas e virulentos.
“É a perda da perspectiva de ver um país melhor, que aprende com seus erros e tenta trilhar outros caminhos que nos desviem das catástrofes anunciadas às quais, parece, já nos acostumamos a vivenciar.”
Neste 2021, a Covid fez suas vítimas, e a reação a ela deixou outras mais nesse sombrio saldo. Talvez o engajamento de muitas pessoas em redes de fake news, de ataques a jornalistas, a universidades, à ciência e ao conhecimento tenha “matado” muita gente para nosso convívio futuro. Nessa seara, as perdas foram doídas e numerosas. Facetas que sequer desconfiávamos que pudessem existir na psique de amigos e parentes se revelaram da pior forma possível. A empatia foi engavetada e a cegueira no afã de seguir um líder despreparado e inconsequente afastou esses “fãs do Mito” não só de nosso coração, mas de nossa jornada num sentido mais amplo. A tristeza em assistir a esses espetáculos tétricos foi alargada com a presença neles de pessoas que tinham nosso afeto, muitos deles atacando frontalmente seu trabalho e, não raro, até sua existência.
Essas são perdas difíceis, feridas abertas de cicatrização impossível. Pensar diferente não é o problema, mas sim defender o indefensável. Aí entram mais que meras preferências políticas, mas questões ligadas a caráter, a confiança, à capacidade que cada pessoa tem de fazer ou manifestar algo indizível. E a imagem de quem convivia com você começa a erodir e nem mesmo os bons sentimentos que ainda cultiva conseguem resistir à repetição, incessante, de tais absurdos. Perdeu-se um laço, no final das contas. Perdeu-se algo muito mais valioso que bens materiais: foi-se a referência daquela pessoa em sua vida. É assim que me sinto depois desses últimos anos, perdendo as referências e as pessoas. Alienar-se de tais embates pode ser até necessário em certos momentos, mas essa postura não resolve os problemas, sequer os adia, na verdade. Talvez escamoteie o que é tão complicado de admitir.
“A perda pessoal maior não vem da inabilidade de uma crítica mal colocada, de uma ofensa eventual que escapuliu. Vem da certeza que aquela pessoa que convive com você, na verdade, odeia o que você faz e o que você é. Essa perda é incomensurável.”
Ser jornalista e professor universitário no Brasil de hoje é uma tarefa árdua e cansativa. Isso ocorre não só por conta dos impropérios e desaforos ditos por altas autoridades, pela histeria de seus apoiadores, pela omissão de quem deveria defender a democracia. Isso tudo causa indignação e revolta, mas não tristeza. O que entristece é ver gente próxima referendar isso, como se não estivessem, com tal comportamento, atacando, no meu caso, a mim. A perda pessoal maior não vem da inabilidade de uma crítica mal colocada, de uma ofensa eventual que escapuliu. Vem da certeza que aquela pessoa que convive com você, na verdade, odeia o que você faz e o que você é. Essa perda é incomensurável.
Nesse sentido, tive muitas perdas, sobretudo no decorrer deste ano. Pessoas que, após uma resposta a uma ofensa ou ao apoio a uma agressão a colegas jornalistas, cortaram os vínculos, demonstrando o tamanho do desprezo que, na verdade, sempre alimentaram, disfarçado de uma amizade insincera. Esta é uma perda profunda e inesquecível, da qual é preciso tirar aprendizados, mas que se revelam traumáticas. Uma situação que acarreta outras perdas que vão se consolidando. Ouvimos sempre dizer que a pandemia nos faria refletir, que sairíamos melhores de experiência tão intensa, que bagunçou a vida de todos. Mentira. Ninguém saiu melhor dessa pandemia. As pessoas estão mais agressivas, menos tolerantes, mais ávidas pelo que há de pior, tirando de si os piores sentimentos e os oferecendo até a desconhecidos.
De minha parte, saio também pior. Muito mais amargo e desconfiado. Não é uma questão de seletividade nas amizades, é algo mais amplo e primitivo, porque é um movimento de defesa. Essa é outra perda que acumulo: a perda da fé nas pessoas, a perda da convicção de que aquele que está ao seu lado é necessariamente bom. Isso não existe e tal realidade se impõe cada vez mais. Isso gera um ambiente horrível, sei disso. Desconfiar de tudo e todos não é mérito, é defeito, mas um defeito que tem razões para existir. Ele não é algo congênito e que se manifesta espontaneamente. Essa perda da inocência e da confiança é curtida em muitos episódios de decepção. Nesta pandemia, nunca me decepcionei tanto com as pessoas. Nunca me decepcionei tanto comigo mesmo, por ter sido tão crédulo a ponto de me deixar enredar por meras palavras, quando os atos iam em outra direção. Amizades não podem ser construídas de forma tão leviana. Isso só leva a rasteiras e surpresas desagradáveis.
“Nesta pandemia, nunca me decepcionei tanto com as pessoas. Nunca me decepcionei tanto comigo mesmo, por ter sido tão crédulo a ponto de me deixar enredar por meras palavras, quando os atos iam em outra direção. Amizades não podem ser construídas de forma tão leviana. Isso só leva a rasteiras e surpresas desagradáveis.”
Temos muitas perdas para computar. A vida nunca mais será a mesma, seja pela saudade dos que se foram, seja pelo gosto amargo na boca que sentimos ao ver alguns vivos que andam tão ativos por aí. O Brasil perde sua dignidade pela fome e a estupidez. Nós, indivíduos dessa máquina inclemente, perdemos pontos de sustentação, conversas e projetos. Perdemos afetos, esperanças e ilusões. Perdemos até a fantasia de que certas pessoas gostavam da gente quando, na verdade, lá no fundo, elas só cultivavam um mal querer que estava escondido, mas que agora encontrou o duto perfeito para vir à tona e explodir na nossa cara, jogando nela o quanto somos tolos em acreditar nas pessoas. Quem faz isso, só perde.