[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
III
Em sendo mais do que sou
já não alcanço momento
que sobreleve pairou
só no que sou-pensamento;
buscara em mim padecendo
tudo que não me consinto
coisas que nunca sabendo
souberam tudo que sinto;
esbarro tão transparente
neste fundo que ficou
onde tudo passa rente
quando tão alheia estou
que percebi de repente
vida por mim que passou.
XX Sonetos (1959)
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[2]
Improviso de maio
Não deixarei que o desgosto
renegue meu ser inteiro:
na superfície dos corpos
qualquer amor é o primeiro.
Se diligente, que importa
o modo frusto e incompleto:
somente as coisas do corpo
nutrem apetite certo.
Nem seria o sentimento
capaz de cristalizar
toda essa faina de afetos
da dinâmica de amar.
Tampouco sabem os meandros
incoercíveis da mente –
a conspurcar o sentido
daquilo que o corpo sente.
Farei que este amor – suposto
que a premunir-se, desperte –
seja ferido de morte
por um demônio solerte.
Induções, desvalimentos,
isentos do negro humor
no gosto pelas soberbas
funambulices da dor.
Que a perda de amor consiste
num episódio banal:
não é a forma que imprime
com indelével sinal,
mas a volúpia que elide
rostos e corpos e instiga
à contínua vigilância
o ser que a sustenta e abriga.
De Maio aqui me despeço
– ó singular compulsão! –
as duas mãos segurando
incólume, o coração.
Coração incólume (1968)
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[3]
Tímida confidência de um poema
Em tudo há um sentimento
vigilante
que procura vir à luz do dia –
raro nos é dado
saber quando
devemos acender-lhe a boca fria.
É por isso que vamos ficando
cada vez mais fechados –
covardia
ou surdo magnetismo
palpitando
entre o que fala e o que silencia.
Pose (1968)
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[4]
Partitura
No juízo perfeito, fui fechando
Esta flor que se abriu, inusitada –
Rosa desfeita em brisa na calada
Da noite – quando o dia foi virando
Como um lençol sem brilho, sem que nada
Ferisse a sua fímbria, fora quando
A fúria se rendia, debruada
Entre as pregas da aurora, esvoaçando.
Então se deu a última pancada
Partida ao meio – firme, redundando,
Surda carícia, escala inacabada.
Além de toda fome, sublimada.
Superfície de veias estalando
Como a lenha madura e Consagrada.
A rosa malvada (1980)
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[5]
Era uma tarde frese
Era uma tarde frese, empelicada.
Eu vinha fria e fétida, mas vinha.
Não tinha resto meu, se tudo eu tinha
Não era nome ou rosto, de onde eu vinha.
Ele me viu da branca paliçada
E veio ao meu encontro, já que eu vinha
Na mesma direção, pois que não tinha
Nenhuma outra saída, de onde eu vinha.
Paramos sobre a ponte. Promulgada
Intimava os atalhos, mais não tinha.
Ele cercava o fogo até o cerne.
E fui ganhando brilho, por um nada.
Sem que nunca soubesse de onde vinha
A ressurgir no tempo em minha carne.
Batendo pasto (2020)
Perfil
Maria Lúcia Alvim nasceu em Araxá-MG em 24 de outubro de 1932 e morreu em Juiz de Fora em 3 de fevereiro de 2021 por causa de complicações da covid-19. Na juventude, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Além da poesia, dedicou-se também às artes plásticas – a pintura e a colagem sendo os meios de expressão. Publicou os seguintes livros de poemas: XX sonetos (1959), Coração incólume (1968), Pose (1968), Romanceiro de Dona Beja (1979), A rosa malvada (1980) e Batendo pasto (2020). Em 1989, a Livraria Duas Cidades, na coleção Claro Enigma, dirigida pelo professor e escritor Augusto Massi, publicou Vivenda – 1959-1989, que reúne os seus cinco primeiros livros. Avaliando esse conjunto, Berta Waldman chama atenção para a “habilidade artesanal, apurado senso de musicalidade e plasticidade, além de um impulso de busca incessante, responsável pelos avanços e recuos do projeto poético da autora”. Irmã dos poetas Maria Ângela Alvim e Francisco Alvim (confira uma seleção dos poemas deste último em http://ermiracultura.com.br/2019/11/14/cinco-poemas-de-francisco-alvim/) tem trajetória intelectual surpreendente: deixou inédito, durante quase 40 anos, o manuscrito Batendo pasto sob a guarda de Paulo Henriques Britto para que fosse publicado somente após a sua morte. Escrito em 1982, o livro foi publicado em 2020 pela Relicário Edições sob os cuidados de Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck. Batendo pasto foi o vencedor do Prêmio Jabuti 2021, na categoria poesia.