O atraente diálogo entre Pier Paolo Pasolini e a cultura brasileira inscreve-se em diversos movimentos recíprocos, dos mais óbvios e incensados àqueles que ainda carecem de pesquisa e formatação interpretativa.
Por exemplo: será fácil compreender a recepção do artigo do italiano a respeito do “futebol de poesia” praticado pelo Brasil na Copa de 1970, capaz de suplantar a “prosa estetizante” da seleção italiana; haverá mais profundidade ao constatar a relação íntima entre o Cinema Novo e a obra pasoliniana, com destaque para a importância sustentacular desta no progresso artístico de Glauber Rocha; e enfrentará outra dificuldade a catalogação das entradas do escritor Pasolini no apreço da crítica literária nacional.
A bem da verdade, o intelectual – epíteto que talvez abarque a premência e a solidez do gênio em comento – erigiu-se nas letras e, mais assertivamente, começou e terminou a carreira como poeta. Alexandre Pilati, em “O coração consciente de Pasolini em ‘As cinzas de Gramsci’”, ao perceber que o cineasta Pier Paolo é amiúde considerado um cineasta-poeta, por razões justas ou não, assevera: “O cineasta, o ensaísta, o teatrólogo, o polemista, todos esses ‘Pasolinis’, a nosso ver, encontram sua condensação explicativa e sua realização mais agudamente dilacerada no prolífico Pasolini poeta.”
Portanto, a conversa mais interessante e contumaz entre o italiano e o Brasil, possivelmente, é aquela descrita em versos pelo próprio autor, quando passou pelo país em março de 1970. No dia 13, o voo de Pasolini, que exibirá Medea (1969) em Mar del Plata, realizou um pouso de emergência no Recife. Na volta à Itália, entre os dias 20 e 23, o cineasta decidiu-se por fazer uma escala no Rio de Janeiro e conhecer Salvador.
O volume Trasumanar e organizzar, do ano seguinte, contém três poemas que relatam a passagem do poeta pelo Brasil: “Comunicado à ANSA (Recife)”, “A choradeira de que falava Marx” e “Hierarquia”. Para a visão mais completa da intersecção entre o autor europeu e o país sul-americano, confira-se “Pasolini interpreta o Brasil, o Brasil interpreta Pasolini”, de Mariarosaria Fabris, em Pasolini, ou quando o cinema se faz poesia e política de seu tempo, de organização de Flávio Kactuz. Bem assim, “Nós e ele: Pasolini no Brasil”, de Maria Betânia Amoroso, posfácio da antologia poética lançada pela Cosac Naify, traduzida por Maurício Santana Dias.
Nos dois primeiros poemas, pois, fala-se do momento imediato ao pouso de emergência, o contato com os olhares do operariado que reformava o aeroporto, eis que “É assim que o Brasil me saúda/ e retribuo a saudação com meu coração burguês/ que já sabe o que vai receber por aquilo que dá”, conforme “Comunicado à ANSA (Recife)”. Adiante, o eu-lírico descreverá melhor sua melancolia burguesa em contraponto aos proletários do Terceiro Mundo, como em “A choradeira de que falava Marx”: “Numa única manhã encontrei uma pátria cheia de inocentes,/ e não me mexo, não ouso ficar no meio deles,/ aqui parado a olhar os rostos destes bandidos que nada/ distingue dos outros, os servos sem culpa, cuja vida é vida;/ não consigo arrancar de mim esta infantil sirene que canta/ a choradeira de que falava Marx.” O povo brasileiro de Pasolini, durante a breve interlocução, limita com o Hércules-Quasímodo de Euclides da Cunha, analisado sob um ponto de vista superficial. Antes de tudo um forte, há algo no homem que atrairá afetivamente o poeta, ainda que este, a princípio, revele que “O Brasil é a nova pátria de alguém (tanto faz que seja eu).”
Deter-se nos significados de “Hierarquia” é fundamental. De maior fôlego, o poema remonta ao segundo momento da viagem, a estadia no Rio de Janeiro. Pasolini absorve com intimidade e passionalidade a paisagem social brasileira. Ele opõe ao “tanto faz que seja eu” anterior a identificação absoluta com o país: “Brasil, minha terra,/ terra de meus verdadeiros amigos”, “Ó Brasil, minha pátria desgraçada” e “Oh, Brasil, minha terra natal” aparecem na peça. Mariarosaria Fabris diz que “Ao fazer da cidade maravilhosa uma tela na qual projeta seus fantasmas, Pasolini lançou sobre o Brasil o mesmo olhar amorosamente interessado com que havia olhado para o Friul dos camponeses, a Roma das periferias, um sul da Itália mítico, a Cuba revolucionária, a África pós-colonial”.
O ponto nevrálgico da mudança de perspectiva foi o encontro efetivo com o âmago popular, seja guiado por um jovem em passeio pela favela, seja conversando na praia com um suposto torturador: “dentro de cada habitante seu, meu concidadão,/ há um anjo que não sabe nada,/ […] que se move, velho ou jovem,/ para pegar em armas e lutar/ indiferentemente pelo fascismo ou pela liberdade –/ Oh, Brasil, minha terra natal, onde/ as velhas lutas – bem ou mal já vencidas –/ para nós, velhos, readquirem sentido”. A mesma proposta apareceu antes no texto, já que “É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e outro subversivo;/ aquele que arranca os olhos/ pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados.” Nessa terra ideal, as lutas classistas retomariam a razão, porque aparentemente intocada pelos aspectos homogeneizadores do neocapitalismo – o consumismo e a cultura de massas pungentemente denunciados por Pier Paolo Pasolini na Itália, em ideias reunidas nos Escritos corsários.
Tornando os brasileiros homogêneos por outros motivos e mediante outros artifícios, Pasolini parece inscrevê-los num imaginário de afeto personalíssimo. Mariarosaria Fabris resgata uma fala esclarecedora do italiano, a respeito da “tribo napolitana” de Il Decameron (1971), em que confessa “a saudade que tenho de um povo ideal, com sua miséria, sua falta de consciência política (é terrível dizer isso, mas é verdade), de um povo que conheci quando criança. […] Uma realidade da qual ainda gosto, mas que não existe mais na história”. É a “pátria desgraçada,/ destinada sem escolha à felicidade”. No topo da hierarquia de que fala o poema, nada mais contraditório: “a ambiguidade, o nó inextricável.” Para a crítica majoritária, o poeta sente-se sobretudo atraído pelas contradições que vê no Brasil, as quais foram já soterradas na Itália, assimiladas pela economia.
Com efeito, como quis Alexandre Pilati, “o caráter poético de Pasolini só poderá ser bem compreendido se animarmos a explicação com um componente político de igual peso”, pois trata-se de “escrita poética como uma forma política de resistência ao mundo da reificação do capitalismo tardio.” É assim que a busca de um lugar descontaminado do neocapitalismo, mas prenhe e pulsante de energéticas contradições, motiva-o a pintar o Brasil sociocultural. Basta ler que “Ó Brasil, minha pátria desgraçada,/ […] (de tudo são donos o dinheiro e a carne,/ ao passo que você é tão poético)”.
Estas linhas servem ao propósito de considerar, através da poesia, a estadia de Pier Paolo Pasolini no Brasil. Extremamente fértil, a experiência reconstitui a persona brasileira, sobretudo singular, aos olhos de uma das mentes criativas mais perspicazes e originais do século passado, verdadeiro farol do debate cultural. Nesse sentido, os textos de apoio oferecem imersão ainda melhor.