[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
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VIII
Carrega consigo um esquecimento definitivo
(podia narrar descrever rasurar fotografias raspar paredes)
mas essa lembrança não subia não voltava não mais
O rosto vivo da avó (a singularidade de sua doçura
no balanço de barriga nas tardes em que era risada solta
nos doces que carregava pé de moleque rapadura
pirulito tudo distribuído com as mãos mágicas saídas das
rugas de um embornal surrado) apagou-se
No entanto ela está
lá ainda dormita o dia todo não importa a casa
Dorme sob a sombra inconsistente de ter-sido traz a cabeça
encapuzada de trevas – vestida de noite – uma cobertura transluz
antecipa a boca aberta do fim, uma touca de pele foi
encurtando silenciando adormecendo seu rosto
Uma máscara
a torna invisível antes mesmo que não lhe sirva mais
A mulher que nasceu sem metafísica (2021)
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XIX
No ano em que o pataxó galdino foi queimado vivo
esperou o ônibus das 5h40 que a levaria a outro que
foi pega de surpresa ainda às 5h30 por uma chave de braço
e por uma mão que apertou muito sua buceta vestida de jeans
A mulher que nasceu sem metafísica (2021)
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XVII
Memórias são como ruas
esvaziadas por placas azuis
não sinalizam que
aquele lote baldio de grama verdinha
na 25-A era a casa do fabiano catador
e a rua dona francisca de costa e cunha
já foi a 26-A onde tudo começou e que o centro
de convenções está construído sobre a clínica
de radiologia goiana onde tudo começou e que
até hoje não terminou
porque placa é coisa de desdizer
esqueça que Goiânia é um câncer azul a céu aberto
A mulher que nasceu sem metafísica (2021)
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XXXVIII
A judite da Artemísia prendeu os cabelos
fechou os cotovelos, franziu a testa
– carne dura exige esforço, ela já sabia –
no braço uma pulseira de delicadeza
A judite do botticelli juntou as saias e
partiu (cimitarra, ramo de oliveira
embornal, cabeça cortada) melancólica
por que a morte está sempre atrasada?
Mas a judite que ninguém pintou
trazia consigo uma fotografia da casa invadida
enquanto vencia a última fibra do grosso pescoço
quando? o seu deus falará a minha língua
A mulher que nasceu sem metafísica (2021)
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XLI
Quando o direito à imaginação
tornou-se arma nas mãos do inimigo
cavou um verso com profundidade
e grandes lábios de trincheira para fazer caber
(os mais minuciosos relatos das borboletas rabo-de-andorinha,
as verdades relativas do rosa e do laranja nas trombetas dos anjos,
os detalhes incontornáveis do silêncio do urutau em campo aberto,
as narrativas inverificáveis das salamandras de dorso vermelho)
escritos de próprio punho, mal escritos, empolados, singelos, poéticos,
engajados, herméticos, realistas, delirantes, incendiados,
rasgados segundos antes
(restos de real – sangue respingado, serpentina em baile interrompido –
que se colam sob as solas dos sapatos, que se arrastam pela vida)
A mulher que nasceu sem metafísica (2021)
Tarsilla Couto de Brito nasceu em Goiânia no dia 14 de novembro de 1975. Foi livreira no Rio de Janeiro. Atualmente, é professora de Teoria, Crítica e Ensino de Literatura na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. O seu interesse acadêmico está voltado também para os estudos de mimesis, crítica e tradução do exílio, autoria feminina e escrita criativa. Publicou Sentimentos carimbados – Ensaio sobre o amor em tempos de pandemia (Coletivo Goiânia Clandestina, 2021). Em coautoria com Jamesson Buarque, publicou ainda o livro de poemas Coisas que as máquinas não podem fazer (Caravana, 2021). A mulher que nasceu sem metafísica (Grafisch Atelier Hidrolands, 2021) é o seu mais recente livro. Desde 2017, escreve para a coluna NoNaDa de Ermira Cultura. Também atua como fotógrafa.