A experiência de ser observado pela palavra ocorreu ao escritor Maurice Blanchot. Descrita em Thomas o obscuro, ela encantou Lacan, a ponto de ele fazer dela uma longa citação no final do Seminário 9 sobre A identificação. Ser observado ou filmado por uma câmera já não tem nada demais nos dias que correm. Esquecemos que a câmera, seja fotográfica, ou cinematográfica, não é apenas um aparelho meramente reprodutor de imagens paradas ou em movimento. Está em jogo a constituição de nossa subjetividade.
Freud mais uma vez abriu o caminho quando descreveu o inconsciente ótico. Walter Benjamin (Passagens) pegou carona, Roland Barthes (A câmara clara) também. Sabe-se da importância que Lacan atribui à pulsão escópica, ao tesão de ver, ao estádio do espelho como releitura da introdução do narcisismo por Freud, e ao olhar como objeto pequeno a causa de desejo e de gozo.
Mas agora tem mais. Vem a chance de captar pela ficção o que será a estrutura do fantasma/fantasia (um impede, outra viabiliza o desejo) e da angústia, que, por sinal, é a mesma estrutura para Lacan. Faltava o literário. E ele veio por Blanchot.
No fim do seminário sobre a identificação, Lacan derrama-se em elogios a Maurice Blanchot, chamando-o de “o poeta de nossas Letras”. Se o auditório de Lacan teve a paciência de ouvir atentamente a longa citação, não vejo por que não reproduzi-la para os leitores de Ermira também filmados por ela. Aqui vai. Luz, câmera, ação!
“É aqui que eu gostaria de participar-lhes a minha felicidade, ao encontrar esses pensamentos na pena de alguém que considero simplesmente como o poeta de nossas Letras, que foi incontestavelmente mais longe que qualquer um, presente ou passado, na via da realização do fantasma, eu nomeei Maurice Blanchot, cujo L’´Arrêt de Mort [A sentença de morte] há muito tempo foi, para mim, a confirmação segura do que eu disse o ano todo, no seminário sobre A Ética, a respeito da segunda morte.”
Lembrando que o seminário da ética é de 1959-1960, o da identificação de 1961-1962, portanto posteriores à publicação de Thomas o obscuro em 1941 e republicado em 1950. Mais uma vez, os artistas antecedem os psicanalistas na revelação da alma humana, se é que ela existe. Pela sua inexistência lutam os podres poderes do governo brasileiro que pretende apagar, destruir, eliminar o menor vestígio da contribuição dos negros à cultura de nosso país, dando bandeira como mordomos de Tânatos oficializando a segunda morte, a morte simbólica, sem resto, de gente como Marielle Franco, Juliano Moreira, entre outros.
A passagem de Lacan foi extraída do seminário publicado pelo Centro de Estudos Freudianos do Recife, coordenado durante muito tempo por Ivan Corrêa. Sua citação é para fins de estudo, enquanto aguardamos a publicação dos restantes seminários de Lacan na versão oficial de Jacques-Alain Miller. Todos os seminários são acessíveis via internet na versão de Staferla.
“Eu não havia lido a segunda versão de sua primeira obra, Thomas l´Obscur”, continua Lacan. “Eu acho que, um volume tão pequeno, nenhum de vocês deixará de prová-lo, depois do que vou ler dele para vocês. Alguma coisa se encontra nele que encarna a imagem desse objeto pequeno a, a propósito do qual falei do horror, é o termo que Freud emprega, quando se trata do Homem dos Ratos.”
A referência é a um caso clássico de obsessão, ao momento em que o Homem dos Ratos – um militar – consegue a duras penas relatar o pavor, o horror, o temor de ser submetido à tortura infligida por um capitão cruel que consistia na introdução de ratos no ânus da vítima. Freud constata o horror no rosto de seu paciente ao mesmo tempo que traduz esse horror como uma espécie de gozo por ele ignorado. Não foi só Lacan que falou de gozo, esse estranho nó de prazer e sofrimento.
“Aqui, é do rato que se trata. Georges Bataille escreveu um longo ensaio, que gira em torno do fantasma central bem conhecido de Marcel Proust, o qual também dizia respeito a um rato, História de ratos…”
“Aqui está. Eu antecipo, ou, mais exatamente, pego um pouco antes Thomas l´Obscur, não é por acaso que ele se chama assim: ‘E em seu quarto […] , aqueles que entravam viam seu livro sempre aberto nas mesmas páginas, pensavam que ele fingia ler. Ele lia, com uma minúcia e uma atenção insuperáveis. Ele estava próximo de cada signo, na situação onde se encontra o macho, quando o louva-a-deus vai devorá-lo’.”
A fêmea do louva-a-deus devora o macho após o acasalamento. O inseto é chamado em francês mante religieuse. Essa mesma expressão também é usada para referir-se a uma mulher cruel para com os homens. A fêmea do louva-a-deus é muito maior que o macho.
Deu angústia? Pois saiba que para Lacan “a angústia é besta como chuchu”. Nada a ver com Alckmin. Frase incrível que está no seminário sobre a identificação e que tem a virtude de desinflar certos espaços psíquicos que de tão entulhados fazem com que falte a falta. A angústia é isso, a falta da falta.
Lacan imagina uma experiência em que estaria diante de um louva-a-deus gigantesco, de três metros de altura. Vestiria uma pele do tamanho do dito macho com 1,75m, mais ou menos a altura dele. “Eu me miro, miro minha imagem assim fantasiada dentro do olho facetado do louva-a-deus fêmea. Será que a angústia é isso? É muito perto disso.”
Mas o homem quer mais. Inquieto. Diz que isso é apenas uma introdução. O sujeito está em questão. Trata-se da apreensão pura do desejo do Outro como tal, pois que o desejo do homem é o desejo do Outro. E se justamente “eu desconhecia o quê? Minhas insígnias: a saber, que estou fantasiado com a pele do macho. Não sei o que sou, como objeto para o Outro. Diz-se que a angústia é um afeto sem objeto, mas essa falta de objeto, é preciso saber onde ela está: está no meu lado. O afeto da angústia é um efeito conotado por uma falta de objeto, mas não por uma falta de realidade.”
Vamos ver se estamos filmados pela palavra de Lacan: “Se eu não me sei mais objeto eventual desse desejo do Outro, esse Outro que está à minha frente, sua figura é-me inteiramente misteriosa na medida, sobretudo, em que essa forma como tal, que tenho diante de mim, tampouco pode, de fato, estar constituída para mim como objeto, mas onde, de toda maneira, posso sentir um modo de sensações que fazem toda a substância do que se chama a angústia, dessa opressão indizível por onde chegamos à própria dimensão do Outro, enquanto pode aparecer ali o desejo. É isso a angustia.”
O parágrafo é quase proustiano. A inflexão depende também do meu modo de respirar. Recomenda-se pelo diafragma. E então estou às voltas com a seguinte questão: “É somente a partir daí”, conclui Lacan, que vocês podem compreender as diversas vias que toma o neurótico, para se arranjar nessa relação com o desejo do Outro.” Posso ter chegado ao desejo do desejo do Outro, mas esse desejo me atira na angústia. Graças a Lacan, posso situá-la entre gozo e desejo.
Retomando Blanchot: “Ele lia. Ele lia, com uma minúcia e uma atenção insuperáveis. Ele estava próximo de cada signo, na situação onde se encontra o macho, quando o louva-a-deus vai devorá-lo. Um e outro se olhavam. As palavras, saídas de um livro, ganhavam aí uma potência mortal, exerciam sobre o olhar que as tocava uma atração doce e plácida. Cada uma delas, como um olho semifechado, deixava entrar o olhar muito vivo que, em outras circunstâncias, ele não teria sofrido. Thomas penetrava por esses corredores dos quais se aproximava sem defesa, até o instante em que foi descoberto pelo íntimo da palavra. Não era ainda assustador, era, ao contrário, um momento quase agradável, que ele teria querido prolongar.”
E aqui o ponto: “O leitor considerava alegremente essa pequena centelha de vida que ele não duvidava ter despertado. Ele se via com prazer, nesse olho que o via. Seu próprio prazer torna-se grande. Ele torna-se tão grande, tão implacável, que ele o experimenta com uma espécie de pavor e que, tendo-se erguido, momento insuportável, sem receber de seu interlocutor um sinal cúmplice, ele percebe toda a estranheza que havia em ser observado por uma palavra, como por um ser vivo, e não apenas por uma palavra, mas por todas as palavras que se encontravam nessa palavra, por todas aquelas que o acompanhavam e que, por sua vez, continham nelas mesmas outras palavras, como um séquito de anjos abrindo-se ao infinito até o olho do absoluto.”
Que fazemos? Pesquisamos o fantasma. O louva-a-deus macho devorado pela fêmea é uma assombração masculina, bem lacaniana. Defesa é dizer que comemos uma mulher, pois é o contrário, são elas que nos comem. Para ficar no verbo comer, que te observa, e pode até te brochar pela identificação narcísica com a parceira. Quem é o louva-a-deus? Saída rápida, o coito interrompido, a ejaculação dita precoce, o orgasmo, sombras que vão cingindo a fonte da angústia, estruturada tal e qual o fantasma. Escritores são especialistas em fantasmas/fantasias.
Portanto, paciência com a literatura. Virou moda em certos meios psicanalíticos e universitários falar mal da transmissão da psicanálise pela via poética, da poiesis, da arte, como se a crítica ao mero “psicanalisarte” reducionista autorizasse jogar fora o bebê com a água do banho. Crítica semelhante foi feita à pretensa superficialidade do texto jornalístico, em contraste com a suposta profundidade do texto universitário-psicanalítico. Mas a pandemia bagunçou tudo, levando os universitários-psicanalistas a calçarem as sandálias da modéstia via on-line para se comunicar com o respeitável público. Também Mario Quintana dizia de seu horror à crítica estruturalista que transforma a obra de arte em cadáver assim mais fácil para as devidas autópsias. Pois é nesse mesmo contexto da pesquisa do fantasma em Blanchot que Lacan nos fala da opressão do necrófilo, “uma inapreensível verdade”.
Desde Freud, a clínica psicanalítica constata a importância de um intenso e extenso bestiário. Lobos, ratos, cobras, baratas, cavalos, pássaros falantes povoam o imaginário do sofredor e lhe provocam efeitos reais. Só pela simbolização, tomando esses seres míticos, imaginários, no seu valor de significantes, é que podemos aguardar a cura, mesmo sem nela ter esperança.
Lacan nos diz que esse é o caminho que Maurice Blanchot “descobre para nós”. De novo, luz, câmera, ação!
“Suas mãos tentaram tocar um corpo impalpável e irreal. Era um esforço tão terrível, que essa coisa que se distanciava dele e, distanciando-se, tentava atraí-lo, pareceu-lhe a mesma que indizivelmente se aproximava. Ele caiu no chão. Ele tinha o sentimento de estar coberto de impurezas. Cada parte de seu corpo experimentava uma agonia. Sua cabeça era forçada a tocar o mal, seus pulmões a respirá-lo. Ele estava ali no assoalho, torcendo-se, depois entrando nele mesmo, depois saindo. Ele arrastava-se pesadamente, pouco diferente da serpente que ele teria querido tornar-se, para acreditar no veneno que sentia em sua boca […]
Foi nesse estado que ele sentiu-se mordido ou sacudido, não podia sabê-lo, pelo que lhe parecia ser uma palavra, mas que assemelhava-se mais a um rato gigantesco, de olhos penetrantes, de dentes puros, e que era uma besta todo-poderosa. Vendo-a a algumas polegadas de seu rosto, ele não pôde escapar ao desejo de devorá-la, de trazê-la para a intimidade mais profunda consigo mesmo. Ele se atirou sobre ela e, enterrando as unhas nas entranhas, procurava torná-la sua.
O fim da noite veio. A luz que brilhava através das persianas se apagou. Mas a luta com a besta medonha, que se revelara afinal de uma dignidade, de uma magnificência incomparáveis, durou um tempo que não se pode medir. Essa luta era horrível para o ser deitado no chão que rangia os dentes, arranhava-se o rosto, arrancava-se os olhos para deixar entrar a besta, e que teria se assemelhado a um demente, se não tivesse se assemelhado a um homem.
Ela era quase bela, para essa espécie de anjo negro, coberto de pelos ruivos, cujos olhos faiscavam. Ora um acreditava haver triunfado e via descer nele, com uma náusea incoercível, a palavra inocência, que o sujava. Ora o outro o devorava, por sua vez, arrastando-o pelo buraco de onde viera, depois o rejeitava como um corpo duro e vazio.
A cada vez, Thomas era impelido até o fundo de seu ser pelas próprias palavras que o haviam frequentado, e que ele perseguia como seu pesadelo, e como a explicação de seu pesadelo. Ele se reconhecia sempre mais vazio e mais pesado, ele não se mexia, senão com uma fadiga infinita. Seu corpo, depois de tanta luta, torna-se inteiramente opaco e, aos que o olhavam, ele dava a impressão repousante do sono, ainda que ele não houvesse cessado de estar desperto.”
Blanchot não está só. James Joyce dizia que se sentia “metralhado” pelas palavras, e foi só o seu saber-fazer com elas que o livrou da psicose, segundo Lacan. Clarice Lispector dizia que as palavras são pedras duras, nada têm a ver com as sensações, as sensações são delicadíssimas, fugazes, extremas. Schreber, o grande psicótico, denuncia as falas impostas. Para Lacan, a linguagem está ligada a alguma coisa que no real faz furo. É por essa função de furo que a linguagem opera seu domínio sobre o real: “Aliás, a linguagem come o real.” CORTA!
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