[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
A síndrome de Stendhal não é muito conhecida, mas você pode ter passado por algo parecido, provavelmente em menor escala, ao ser exposto a alguma obra de arte, uma vez que tal síndrome está associada à reação psíquica de pessoas que são afligidas por um desbalanço emocional profundo ao fazer viagens turísticas, por exemplo, e serem expostas a inúmeras obras de arte em museus ou a concertos de grandes orquestras, experimentando, com isso, ansiedade, taquicardia, tontura e desorientação. Certamente passar por algo assim nos levaria a questionar: o que diabos aconteceu comigo? No entanto, mesmo sem atingirmos tal desbalanço em plenitude, após nos depararmos com algo artístico que de fato nos afeta, podemos nos perguntar sobre as razões de termos sido assim afetados.
Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), essa dúvida tem papel importante na construção do saber humano. Ele argumenta a favor do desconhecimento desse processo, já que talvez a busca por conhecimento não estaria na origem da busca de compreensão ou da descrição da nossa reação corpórea, nem na tentativa de descobrirmos qual tipo de arte é capaz de provocar esse resultado no maior público possível.
Nietzsche, em seu texto Schopenhauer como educador (1874), leva-nos a refletir sobre essa grandeza de sentimento que a arte provoca em nós, segundo a qual cada indivíduo é interpelado a processar o significado de seu efeito. Talvez sem percebermos, buscamos isso no consumo de arte atual, como séries, filmes e livros, os quais dialogam profundamente com nossos próprios dilemas, conectando-nos narrativamente a eles e nos convidando a fazer parte da criação de todo um mundo fictício. O filósofo também aponta que há uma profunda sabedoria na forma em que uma sociedade absorve uma obra de arte, ainda mais quando ela se comporta de forma uníssona na resposta emocional ao ser exposta a ela.
Com efeito, mais tarde, o psiquiatra e psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) construirá a ideia de inconsciente coletivo, demonstrando a capacidade de elaborarmos significados comuns quando somos provocados ao reagir ao mundo sensorial, interpretando-o, transportando os fenômenos para a esfera da mente, que se utiliza de padrões simbólicos como base interpretativa das formas que constituem o mundo exterior a ela. Assim, as interpretações que podemos dar às obras de arte que absorvemos estão relacionadas aos símbolos que transportamos do mundo exterior para a construção da nossa própria personalidade, que por sua vez é formada pelos símbolos que também constroem o inconsciente coletivo. De certo modo, podemos dizer que Jung confirma Nietzsche, que anteriormente apontou para uma leitura simbólica da própria vida, a fim de entendermos os hieróglifos da vida universal.
Contudo, mais importante que isso seja talvez o mérito que Nietzsche dá para o impacto da arte. Essa dúvida que nos é apresentada em forma de emoção, quando saímos do encontro com a arte e voltamos ao mundo da responsabilidade, essa capacidade de agir de forma pessoal, a fim de darmos significado ao que foi experimentado, tudo isso é, para Nietzsche, a condição para que uma sociedade estabeleça relações fecundas com a filosofia. Para o filósofo, tanto a arte quanto a filosofia devem ser feitas por artistas, pois só estes são capazes de apontar para o novo. É na arte que o vislumbre pela inovação do espírito humano acontece, a liberdade da linguagem artística proporciona condições de criações únicas.
O infinito debate sobre a busca de significado no mundo da arte se dá pelo fato de que a arte não nasce para o mundo físico e, por isso, não pode ser definida ou limitada. Ela sempre nasce de forma livre para ser interpretada infinitamente, e essa característica é a fonte de onde surge a possibilidade de nos reapresentarmos a liberdade do descobrir, a fome para o novo e o espírito do conhecer. A arte é, nesse sentido, mãe do conhecimento. Todavia, como mãe de um filho já crescido, embora não lhe diga mais o que deve ser feito e o modo de fazê-lo, continua a inspirá-lo com sua sabedoria.
Referências
NIETZSCHE, Friedrich. Nietzsche os pensadores. São Paulo: Editora Victor Civita, 1983.
JUNG, Carl. O Homem e seus símbolos. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2008.
[1] Doutor (2021), mestre (2012) e graduado (2008) em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: costavhr@gmail.com
O artigo é o quinto da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.
- O tempo do desejo, de Vítor H. R. Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/22/o-tempo-do-desejo/.
- A clínica analítico-comportamental é espaço para produção de conhecimento científico?, de Vanessa Borri e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/29/a-clinica-analitico-comportamental-e-espaco-para-producao-de-conhecimento-cientifico/.