A fim de entendermos a educação pelas humanidades (ciências humanas) como fonte de resistência à instauração de políticas autoritárias, é necessário, antes, esclarecer a natureza desses regimes ditatoriais, cujo objetivo é usurpar a soberania popular e reprimir o seu poder, para que, desse modo, possamos compreender o porquê de eles ainda se instaurarem nas sociedades contemporâneas. Nesse contexto, Jason Stanley, na obra How fascism works: the politics of us and them[1], publicada em 2018, apresenta, por meio de reflexões históricas, filosóficas, sociológicas e de teoria crítica de raça e de gênero, como os Estados democráticos e as ideias liberais, pouco a pouco, vêm sendo seduzidos traiçoeiramente pelo “canto de sereia” de lideranças com vieses autoritários.
Essa obra, resumida pela revista americana de crítica literária Kirkus Reviews (Cintra, 2018)[2],como sendo “um chamado para as democracias resistirem à insidiosa invasão do fascismo”, possibilita a identificação de elementos inflamáveis em discursos políticos, chamando a atenção para o fato de que países, mesmo democráticos, podem padecer desse mal caso sejam governados sob a influência de políticas de cunho ultranacionalista, como o fascismo.
Um dos pilares que favorecem a instauração dos regimes autoritários é a figura de um líder que fala em nome de uma nação, isto é, a submissão e um alto nível de respeito simbólico a uma autoridade nacional são comuns na dinâmica de grupos sociais, já que seguir um líder, aparentemente invulnerável, denota uma sensação de proteção, ainda que falsa, frente à insegurança de determinada organização social. De acordo com Stanley (2018, p. 7-14), em uma sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai de família patriarcal. O líder é comparado ao pai da nação e sua força e poder aparecem como fonte de sua autoridade, do mesmo modo que a força e o poder do pai de família no patriarcado aparecem como fonte de suprema autoridade moral sobre filhos e esposa.
Outro pilar de sustentação dos movimentos ultranacionalistas de extrema-direita é a desvalorização de um tipo específico de educação – a saber, as humanidades –, visto que, quando esse ponto é solapado, resta apenas o poder autoritário. Por esse viés, recorremos à obra Not for profit: why democracy needs humanities[3], publicada por Martha Nussbaum em 2010, obra na qual a filósofa desenvolve uma análise a respeito dos problemas enfrentados durante o processo de ensino para a transformação de alunos em cidadãos com pensamento crítico. Especialmente em seu capítulo III, “Educating citizens: the moral (and anti-moral) emotions”[4], a autora, ao mesmo tempo em que busca identificar os tipos de forças que levam grupos majoritários a almejar o controle e a dominação de grupos minoritários, reafirma a educação por meio da cidadania como um dos alicerces da democracia, a fim de derrubar os pilares do autoritarismo, que levam ao esvaziamento democrático.
Ao longo dessas obras, tanto Nussbaum quanto Stanley explicam que a educação em um Estado autoritário pode ser ora uma aliada dos interesses da extrema-direita, quando for uma educação voltada para o lucro, em geral, de formação técnica, ora uma inimiga, quando se tratar, por exemplo, de estudo de gênero, da análise das ideias marxistas, de formulações contrárias à ideologia patriarcal e de ideias feministas. Nussbaum defende, então, que tornar os ensinamentos em sala de aula aplicáveis ao cotidiano social dos alunos está no cerne para o desenvolvimento de uma cidadania democrática, já que uma educação que desmereça as humanidades, seja voltada ao lucro, seja voltada à formação técnica, pode permitir certo esvaziamento da democracia devido ao tipo de cidadãos que ela forma, cidadãos estes que tornariam propícia a instauração de semidemocracias.
Dessa forma, a filósofa passa a examinar quais fatores, nas sociedades ocidentais e orientais, parecem denunciar a ideia de que há uma hierarquização de classes, divididas em superiores e inferiores, ou, como Stanley chama, “a política do nós e eles”, retratando a noção de certa “pureza social” e demonstrando que, na ideologia fascista, quando há tempos de crise, o Estado reserva apoio para determinadas classes, ou seja, para o “nós” e não para o “eles”.
Com efeito, esse pensamento de pureza nacional, que estigmatiza e hierarquiza segmentos da sociedade, tende a subestimar os sofrimentos de minorias sociais e de classes minoritárias, que passam a ser vistas como subclasses e responsabilizadas por suas próprias condições sociais. Baseados nessa mesma ideologia, os alemães nazistas retrataram o povo judeu como um povo preguiçoso, que só pensava em altos lucros e não oferecia nenhum trabalho mental ou físico, um povo que tinha por objetivo roubar o dinheiro de arianos trabalhadores. Todavia, esse povo só poderia ser “curado” da preguiça, segundo o que a política nazista pregava, por meio do trabalho duro. Por isso, os portões de Auschwitz e Buchenwald exibiam o slogan “Arbeit Macht Frei” – “o trabalho liberta” (tradução livre).
Podemos, então, perguntar-nos a razão pela qual algumas pessoas são capazes de viver em igualdade, enquanto outras pessoas tendem ao conforto da dominação e da subjugação de minorias e suas culturas. Nussbaum responde a essa questão, apropriando-se da ideia de Gandhi, segundo a qual existe uma conexão entre o “equilíbrio psicológico” dos indivíduos e o “equilíbrio político”, ou seja, uma sociedade que fomenta a avareza, a ganância, a agressão e a ansiedade narcísica é contrária à construção de uma nação livre, igualitária e democrática.
Portanto, se existe uma relação direta entre a psique dos indivíduos e a política, Nussbaum argumenta que se faz necessário avaliar, sobretudo, a psicologia do desenvolvimento infantil e, para isso, precisamos levar em consideração a impotência flagrante que está associada aos bebês ao sentirem-se completamente dependentes de outro sujeito independente. A partir daí, surgem sentimentos como a ansiedade e a vergonha perante sua vulnerabilidade e fragilidade e, por consequência, um desejo crescente de sentirem-se completos e dominantes.
Nessa circunstância, passamos a enfrentar o primeiro desafio moral posto socialmente, uma vez que a própria situação em que a criança está inserida pode gerar um problema ético e uma deformação moral na busca por saciar seus desejos pulsionais – mesmo que nunca possam ser saciados completamente –, tendendo, assim, a uma espécie de desejo por onipotência, tornando-as narcísicas. Por outro lado, é possível dar outro destino aos desejos pulsionais, direcionando-os de forma produtiva/criativa – processo conhecido na psicanálise como sublimação.
Juntamente à vergonha e à ansiedade, outra emoção desempenha um papel importante nessa fase inicial da vida: o nojo. Nussbaum argumenta que, embora seja uma emoção natural e tenha uma função evolutiva, também há aí um componente de aprendizado, uma vez que não sentimos nojo de fezes ou fluídos corporais até a fase de aprender a usar o banheiro, havendo, então, um espaço para o direcionamento do nojo.
Com efeito, o problema se instaura quando a sociedade torna esse nojo primitivo – que parece estar relacionado a coisas muito básicas – em algo concretamente político: o ódio a grupos sociais, por exemplo. Os indivíduos estigmatizados como pertencentes a esses grupos são vistos como objetos de nojo, como criaturas patológicas. Os sujeitos que projetam o seu nojo em segmentos da sociedade estão procurando, de acordo com a interpretação de Nussbaum e de Stanley, hierarquizar a vida social entre aqueles que são puros e aqueles que são impuros, ou seja, constroem um “nós” imaculado, sem defeitos e essencialmente puro, e um “eles” manchado, digno de nojo e dotado de impurezas.
Embora seja intrínseco aos seres humanos sentirem empatia e compaixão por quem conhecem e amam e, assim, adotarem o ponto de vista dessa pessoa como referência, a autora argumenta que nem sempre a compaixão é a chave para que se possa educar, pelas humanidades, para a cidadania, uma vez que há a possibilidade de não sentirmos compaixão por pessoas que não conhecemos ou que julgamos inferiores a nós. Conforme Nussbaum, “a compaixão não é suficiente para superar as forças da escravização e da subordinação, uma vez que a própria compaixão pode se tornar uma aliada do nojo e da vergonha, fortalecendo a solidariedade entre as elites e distanciando-as ainda mais dos subordinados”(Nussbaum, 2010, p. 38).
Desse modo, fica claro que as desigualdades são acentuadas quando se enxergam as diferenças como um ataque pessoal, que promove risco à estrutura social, bem como quando existem a hierarquização e a divisão de segmentos da sociedade como superiores e inferiores, fazendo jus à chamada “política do ‘nós’ e ‘eles’”. Uma visão não humanista sobre as minorias sociais e sobre os sujeitos de uma sociedade dificulta a constituição da empatia e uma possível compaixão entre eles, haja vista que essa ausência leva a uma ideia de superioridade em relação àqueles indivíduos supostamente inferiores, animalizados, marginalizados e impuros.
Quando a educação estrutura-se tendo como referência as humanidades para a formação da cidadania, dificulta-se o processo de promoção de sentimentos como o ódio, o nojo e o desprezo, que são condições necessárias para o enfraquecimento da democracia e para a instauração de regimes autoritários. Esse modelo de educação é, portanto, imprescindível à manutenção de uma democracia forte, bem como uma fonte de resistência a líderes semidemocráticos ou mesmo fascistas.
Referências
CINTRA, Isabel. How fascism works: the politics of us and them. Kirkus Reviews, sept. 11, 2018.
NUSSBAUM, Martha. Not for profit: why democracy needs humanities. Princeton University Press, 2010.
NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos:por que a democracia precisa das humanidades? Trad.: Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
STANLEY, Jason. How fascism works: the politics of us and them. New York: Random House, 2018.
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”.Trad.: Bruno Alexander. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2019.
[1] O leitor pode encontrar a versão desta obra traduzida para o português sob o título: Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”.
[2] A crítica literária a respeito da obra How Fascism Works: The Politics of Us and Them pode ser lida na íntegra no seguinte link: https://www.kirkusreviews.com/book-reviews/jason-stanley/how-fascism-works/.
[3] O leitor pode encontrar a versão em português desta obra sob o título: Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades?
[4] “Educar os cidadãos: os sentimentos morais (e antimorais)”.
O artigo é o sexto da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.
- O tempo do desejo, de Vítor H. R. Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/22/o-tempo-do-desejo/.
- A clínica analítico-comportamental é espaço para produção de conhecimento científico?, de Vanessa Borri e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/29/a-clinica-analitico-comportamental-e-espaco-para-producao-de-conhecimento-cientifico/.
- A arte, mãe do conhecer, de Davi Molina e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/05/a-arte-mae-do-conhecer/.