[Coautora: Paula Mariana Rech[1]]
Sigmund Freud foi um médico neurologista que ficou conhecido como o “pai” da psicanálise. Mesmo não sendo filósofo, todo o seu pensamento, especialmente a sua teoria da pulsão de morte, ocupa certo lugar no campo filosófico contemporâneo.
A teoria psicanalítica da pulsão de morte pode ser associada a um campo aquém/além do princípio do prazer e pode ser observada nos sujeitos por meio de demandas inconscientes de isolamento, estagnação, culpa e necessidade de punição, sendo a mortificação um dos seus principais aspectos. Com efeito, para que se possa minimamente discorrer a respeito de um tema cuja importância é fundamental à psicanálise, é necessário, antes, ressaltar brevemente o modo como Freud entende o termo pulsão. Para ele, a pulsão é uma espécie de motor pressionante ou, mais precisamente, uma “medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corporal” (Freud, 1967b, p. 214).
Segundo Honda (2011, p. 5), a expressão “exigência de trabalho” designa certa intensidade e coação para a atividade psíquica, ou seja, por um lado, temos presente nos eventos psíquicos a expressão das excitações sexuais que alcançam a psique e imploram por satisfação; por outro lado, é exatamente devido ao crescimento do nível excitatório no sistema psíquico que surge a necessidade de se livrar desse aumento de tensão, colocando-o em atividade. Por esse viés, a expressão “medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico” pode ser entendida como a expressão da intensidade de uma demanda da pulsão, sendo ela a “mola-mestra [Triebfeder] do mecanismo psíquico” (Freud, 1987, p. 408). Já Monia Azevedo (2015, p. 4) destaca que a pulsão de morte é entendida como “uma tendência que levaria à eliminação da estimulação do organismo, ou seja, o seu trabalho teria como objetivo a descarga, a falta do novo, a falta da vida, isto é, a morte”.
Freud, por sua vez, define a pulsão de morte como uma necessidade biológica de todos os organismos em querer retornar ao seu estado inicial, isto é, ao inorgânico, inanimado e sem vida, entendendo, assim, que essa pulsão de destruição estaria em oposição à pulsão de vida. Enquanto a pulsão de morte, por um lado, teria ligação direta com a biologia, não sendo, para Freud, essencialmente nada além de uma força biológica, já que tudo o que é vivo um dia morre, a pulsão de vida, por outro lado, diferencia-se da pulsão de morte, uma vez que busca preservar a vida e a existência dos sujeitos, criando meios que priorizam a vida e o prazer.
Contudo, em qual sentido o tema da morte é característico do pensamento psicanalítico e filosófico contemporâneo? Como Freud, cuja formação não está ligada ao campo filosófico, contribuiu, por meio de sua teoria da pulsão de morte, com a discussão referente ao tema da morte?
Por mais que a pulsão de morte tenha importância para aqueles que pesquisam filosofia e psicanálise, não foi por meio de Freud que a filosofia começou a pensar e a tratar sobre o tema, sendo este um objeto caro à filosofia desde o seu início, na Grécia Antiga, até os dias atuais. Se os postulados do “pai” da psicanálise têm relevância para a filosofia contemporânea, isso se deve especialmente à análise da dimensão psicológica do fenômeno da morte. Com Freud, foi possível entender que a morte, algo biologicamente imposto a nós, não é simplesmente um momento final da nossa existência física, mas uma experiência psicológica diária; experiência que mostra que, por mais que a vida seja bela (e ela o é), a morte ainda vence.
Referências
AZEVEDO, Monia Karine; NETO, Gustavo Adolfo. O desenvolvimento do conceito de pulsão de morte na obra de Freud. Revista Subjetividades, Fortaleza, 15(1): p. 67-75, abril, 2015. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000100008
FREUD, Sigmund. (1996i). Além do princípio do prazer. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (v. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1920).
GUTÉRREZ-TERRAZAS, José. O conceito de pulsão de morte na obra de Freud.Ágora, v. V, n.1, jan/jun 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/jCcpPTxMrRF7yb6fyZywnsL/abstract/?lang=pt HONDA, Hélio. O conceito freudiano de pulsão (Trieb) e algumas de suas implicações epistemológicas. Fractal: Revista de Psicologia, v. 23, n. 2, p. 405-422, maio/ago. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/fractal/a/SMYpKVz5qf7DHLLbFLjQvMQ/format=pdf&lang=pt
[1] Paula Mariana Rech, bacharela em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda, com bolsa CAPES, no Programa de Pós-graduação em Filosofia da mesma universidade. Atualmente, desenvolve sua pesquisa a respeito da releitura habermasiana da psicanálise, bem como a respeito da controvérsia recente entre Amy Allen e Robin Celikates sobre a sustentação de um modelo de crítica social extraído da obra Conhecimento e interesse (1968), de Jürgen Habermas. E-mail: paula.mariana.rech@gmail.com.
O artigo é o oitavo da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos da série:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/.
- Por uma introdução crítica e bem informada à obra de Freud, de Caio Padovan e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/15/por-uma-introducao-critica-e-bem-informada-a-obra-de-freud/.
- O tempo do desejo, de Vítor H. R. Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/22/o-tempo-do-desejo/.
- A clínica analítico-comportamental é espaço para produção de conhecimento científico?, de Vanessa Borri e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/29/a-clinica-analitico-comportamental-e-espaco-para-producao-de-conhecimento-cientifico/.
- A arte, mãe do conhecer, de Davi Molina e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/05/a-arte-mae-do-conhecer/.
- As “humanidades” como fonte de resistência aos regimes autoritários, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/12/as-humanidades-como-fonte-de-resistencia-aos-regimes-autoritarios/.
- A “leveza” da violência, de Valdinei Ferreira Nunes e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/02/19/a-leveza-da-violencia/.