[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
A mácula
Você maculará a magia maior,
a vida, com a magia menor,
a poesia. Porque a ti só te resta
encarar a desfaçatez do mundo
por uma fresta de beatitude
e imaginação; por um artifício
de beleza emprestado aos profetas.
E maculará a lógica de seu tempo,
os inquisidores de sua cidade,
com um pedaço de treva grega
ou de copiosa trova portuguesa.
E não tirará proveito algum
que valha da pena um testamento,
mas nem por isso corará de ombreá-la
com o sabre, o fuzil e o canivete.
O teatro de sombras (2021)
***
[2]
A metafísica da goiaba
Eu me pertenço como
a goiaba à goiabeira:
definitivamente parte,
até o momento vertiginoso
que desgarre-me do todo.
E então fico entregue –
a vermes que me cavucam
as carnes; às bocas belas
que me devoram; ou feias
e banguelas que a mim
cospem. Eu pertenço-me
para somente: abandonar-me
e depois regressar: semente.
O teatro de sombras (2021)
***
[3]
Na terceira década do século XXI
Algumas coisas fazemos
apenas para lembrar
que o mundo acabou.
Abastecer o carro, ouvir
Paulo Vanzolini e marcar consultas:
são bons exemplos.
Algumas coisas faremos
para resgatar o mundo
de seu estado terminal.
Pensemos enterrá-lo.
(Já é um destino mais digno,
já é um rito a menos.)
O teatro de sombras (2021)
***
[4]
Eu: todo mundo
E, portanto, administro
o peito que é feito
de cinzas (em respeito
às brasas do sinistro
passado). Ali registro
a vergonha, os efeitos
da infâmia, os defeitos
de Cristo. Os administro
porque a rigor eu quero
os suplícios todos
para mim. (Tenho esmero,
uma cama de lodo,
e um verso bem sincero:
não sou parte do todo?)
O teatro de sombras (2021)
***
[5]
Constatação em face da obra-prima que postergo
Ninguém escreverá
a obra-prima que postergo.
A obra de que o Diabo
me desvia, pois Deus
está bastante cego.
Como ninguém rabiscou
um pinto enrijecido
nas carteiras do colégio
– eu não as houvesse
bem abastecido.
Em meu lugar jamais
outro (meu duplo,
meu anjo, o Tinhoso)
fará o indispensável.
Sou orgulhoso.
O teatro de sombras (2021)
Paulo Manoel Ramos Pereira, nasceu em 1998 em Goiânia-GO, onde reside. Cursa Direito na Universidade Federal de Goiás. É autor de O teatro de sombras (Kotter Editorial, 2021). Participou da curadoria de Antologia clandestina (Goiânia Clandestina, 2017) e Antologia clandestina II (Goiânia Clandestina, 2021). Escreve ensaios acerca de literatura e artes correlatas para Ermira Cultura e Revista Clandestina. Ao longo dos anos, publicou diversos fanzines de poemas, e textos de sua autoria foram veiculados em jornais de abrangência regional. Traduziu vários autores para blogs e plaquetes de iniciativa independente. Revisou, ainda, algumas publicações de editoras de pequeno e médio portes.