Em um artigo publicado em março de 1868 nos Arquivos russos, intitulado “Algumas palavras sobre Guerra e paz”, Leon Tolstói fornece algumas pistas ao leitor sobre as suas escolhas ao escrever esse épico que tem como cenário a Rússia durante o período das invasões napoleônicas. Segundo o autor, para o artista – e aqui ele, sem dúvida, alude a si próprio –, do ponto de vista “das relações perante os mil incidentes da existência, não pode nem deve haver heróis, mas homens apenas”. E, à diferença do historiador – o qual, conforme Tolstói, ocupa-se exclusivamente dos resultados advindos dos acontecimentos históricos –, cabe ao artista voltar o olhar para “o fato em si mesmo”.
Essas palavras de Tolstói nesse texto anexado depois como “Apêndice” à obra remetem às suas inquietações expressas em outras passagens de Guerra e paz, como o capítulo 1º da nona parte do livro – na qual o autor dá início à descrição dos eventos que antecederam a catastrófica invasão das forças napoleônicas ao império russo – e no capítulo final. Ele recusa-se a atribuir as causas desse “monstruoso acontecimento” que provocou milhões de mortes, devastou a Rússia e reduziu a frangalhos o até então invencível exército de Napoleão, precipitando a queda do imperador francês, aos fatores normalmente apontados pelos historiadores da época: a ambição ilimitada de Napoleão, o caráter demasiado suscetível do czar Alexandre, as intrigas do governo inglês, os erros da diplomacia, entre outros. “Não é possível compreender a ligação que existe entre todas essas circunstâncias e as violências e os morticínios propriamente ditos”, sublinha.
Tolstói relembra o trecho de uma carta de Napoleão ao czar russo, em que o líder francês alerta que dependia apenas dele fazer verter ou não “o sangue dos povos”. Mas como derivar dessa vontade jupiteriana a sequência de atos que envolveriam “milhões de homens [que] praticaram, em relação aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de incêndios e morticínios como não há exemplos nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro”? Diante da imensidão dos acontecimentos decorrentes da incursão das forças bonapartistas em território russo, e da vastidão do sofrimento humano provocado, nesse gigantesco palco em que se desenrolaram as piores atrocidades, mas onde não faltaram também episódios de bravura e histórias de compaixão e solidariedade, os desejos e as veleidades do imperador francês soavam como fúteis e mesquinhos.
No seu intento de reduzir à escala humana as personagens que a narrativa histórica mitificou, seja transformando-as em heróis, seja em vilões – mas sempre no papel de semideuses que controlam por inteiro as massas –, é que Tolstói procura, por exemplo, retratar Napoleão na sua real estatura. “Envergava um uniforme azul, cujas bandas abertas deixavam ver o colete branco que lhe moldava a rotundidade do ventre, e calções brancos também cingindo-lhe as coxas gordas e as curtas pernas metidas em botas altas, de montar. Via-se que acabara de pentear os cabelos curtos, mas uma madeixa se lhe derramava pela ampla testa.” Esse homem atarracado, para quem tudo que lhe era exterior não tinha a menor importância – “uma vez que no mundo – pensava ele – tudo dependia de sua vontade” –, era movido por uma necessidade incontida de “monologar”, marcada ainda por uma eloquência irritada e uma intemperança de linguagem característica de “pessoas favorecidas pela sorte” – complementa Tolstói a descrição da figura imperial.
Da mesma forma que retira de Napoleão e de outros tipos históricos como o czar Alexandre a aura de onipotência, Tolstói também se esquiva de procurar uma causa geral para os acontecimentos narrados. “[…] o conceito da causa é inaplicável ao fenômeno que estudamos”. Afinal, um evento tão grandioso como a guerra deriva da ação coletiva de muitos indivíduos e, nessa cadeia de ações e reações, é tarefa vã apontar qual é a que tenha sido decisiva – e muito menos ainda identificar algum propósito oculto no desenrolar dos fatos. “Quanto mais a inteligência procura erguer-se à compreensão das razões últimas [dos fatos históricos] tanto mais evidente se lhe torna que essas razões lhe são inacessíveis”, escreve o autor russo. Mas se é impossível apontar os fatores determinantes dos acontecimentos, como encontrar algum sentido para a história humana?
A resposta de Tolstói – já prenunciando o misticismo que se tornaria mais patente em obras futuras do autor, como Ressurreição – é que a História caminha conforme leis próprias, obedecendo a uma vontade absoluta (que ele não define bem o que seja) que faz mover o mundo e as ações dos povos. “A intervenção do fatalismo na História é inevitável para explicar estas manifestações desprovidas de sentido, ou, antes, cujo sentido não nos é dado compreender.” Assim, Napoleão, o czar Alexandre, os demais monarcas europeus, os figurões da diplomacia e toda a massa humana envolvida na guerra desencadeada pela invasão das tropas francesas ao território russo em 1812 não passariam de marionetes a serviço dos desígnios ocultos e impenetráveis da História.
É complicado, admitamos, acatar a solução de Tosltói para os impasses que a caminhada da humanidade nos apresenta. Pois se concordamos que homens e mulheres não passam de atores de um espetáculo com um roteiro já predeterminado, teríamos de abdicar de qualquer noção de liberdade individual e, em consequência, de responsabilidade pelos atos praticados.
Mas se as ideias filosóficas do autor russo sobre o fatalismo histórico parecem tão difíceis de serem aceitas, o seu esforço de reconstruir a história deixando os fatos falarem por si mesmos – por exemplo, nas descrições espetaculares que faz dos cenários de batalha, em um painel multifacetado do conflito a partir de uma pluralidade de pontos de vista dos diversos personagens nele envolvidos – confere a esses acontecimentos toda a sua dimensão verdadeiramente humana. Ao retratar a guerra, Tolstói pretendeu mostrá-la na expressão mais vasta dos seus efeitos, com toda a dor e o sofrimento que ela acarreta – e não como um mero joguete de alguns poucos que se julgam donos dos destinos dos povos.