Um dos sistemas de pensamento mais influentes da história, considerado a pedra inaugural da filosofia moderna, nasceu, quem diria, de uma experiência onírica, quase mística. Na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, durante o rigoroso inverno da Alemanha, o jovem René Descartes, então um soldado do exército francês, teve o sono perturbado por uma sequência de três sonhos que ele chamou de “iluminadores”, como se fossem uma espécie de revelação. Esses sonhos, na sua interpretação, indicavam-lhe qual o caminho que deveria seguir a partir daquele momento: “empregar toda a minha vida em desenvolver minha razão, e avançar tanto quando possível no caminho da verdade”, conforme escreveria mais tarde.
Nos nove anos seguintes, Descartes dedicou-se a viajar, empenhado, segundo ele própria narraria posteriormente em uma de suas obras mais célebres, Discurso do Método, em percorrer e estudar o “grande livro do mundo”. Ao final desse período, passou a estruturar o seu ambicioso sistema filosófico, com o qual pretendia unificar todo o conhecimento humano sobre as sólidas bases das certezas racionais.
Séculos depois do sonho de Descartes, o autor da famosa fórmula “Penso, logo existo”, e que acreditava que seu método científico era capaz de provar até a existência de Deus, parece não ter muita coisa mais a nos dizer. Chamar hoje alguém de cartesiano (o adjetivo é derivado do nome latino de Descartes, Renatus Cartesius) soa, em certos meios, como um deboche. Afinal, como não desdenhar do entusiasmo do pensador para com a racionalidade humana, depois de tantos atos de barbárie e desrazão – dos massacres da Revolução Francesa ao colonialismo europeu, das guerras mundiais ao atual colapso neoliberal – que o mundo testemunhou? A crise em que está mergulhada a sociedade ocidental, herdeira do racionalismo cartesiano, com seu apego à técnica e ao cálculo e a sua crença no progresso, não é um sinal de que esse modelo fracassou?
Mas não sejamos por demais implacáveis com Descartes. Seu desejo de construir um “edifício científico iluminado pela verdade” pode não ter se concretizado, mas sua obra continua inspiradora em muitos aspectos. Um deles é a valorização que ele faz da autonomia humana, do pensamento livre e independente, que ousa lançar um olhar questionador sobre tudo – um bálsamo nesta época em que impera a mentalidade passiva e conformista da manada, para lembrar Nietzsche.
Quando despertou dos estranhos sonhos que teve durante aquela longínqua noite de inverno da sua juventude, Descartes decidiu devotar sua vida ao livre-pensar. E assim permaneceu firme até outro terrível inverno que teve de enfrentar, de consequências trágicas, por conta dos caprichos de uma rainha. A convite de Cristina, da Suécia — uma jovem sedutora e inteligente de 23 anos que gostava de se cercar dos grandes sábios de sua época –, Descartes, a contragosto, viajou para a gelada Estocolmo. Lá, em meio a um frio cortante, levantava-se às 4 da manhã para discutir filosofia com Cristina em sua biblioteca, o único horário em que a sempre atarefada rainha poderia recebê-lo. A frágil saúde de Descartes não suportou tamanho esforço e ele morreu de pneumonia, aos 54 anos.