O desafio de refletir criticamente sobre a própria época em que se vive, isto é, de enxergar para além da superfície dos eventos, sejam eles inovadores, banais, admiráveis ou aterradores; de investigar a complexidade de suas causas a fim de compreender as origens desse cenário, tanto as mais imediatas quanto as estruturais e de longo prazo; de confrontar ideias, palavras e ações dos personagens desse quadro para desvendar as relações intrincadas, e por vezes contraditórias, tecidas entre elas; enfim, de ousar um esforço intelectual para compreender uma certa conjuntura que os seres humanos construíram politicamente no mundo e da qual se é, em medidas distintas, personagem e testemunha, constitui um trabalho no qual se sobressaem alguns nomes na história da Filosofia, entre eles os de Alexis de Tocqueville e Hannah Arendt. O autor francês tornou-se célebre por obras nas quais analisa os meandros e desdobramentos da grande revolução que havia abalado os alicerces do Antigo Regime em seu país poucos anos antes de seu nascimento, ou ainda a ascensão da democracia nos Estados Unidos, primeira constituição moderna dessa espécie e que ele pôde conhecer pessoalmente em viagem à América, um exemplo repleto de esperanças e de riscos latentes a serem ponderados com cautela.
A autora alemã, por sua vez, foi pioneira no exame dos regimes totalitários que emergiram no século XX – sobretudo em sua terra natal, de onde teve de fugir para escapar à perseguição nazista contra os judeus –, Estados cujas práticas nefastas produziram impactos tão devastadores sobre incontáveis vidas, que colocaram em dúvida as categorias pelas quais a política vinha sendo concebida e exercida até então, demandando novas abordagens acerca da condição humana e da capacidade do pensamento de confrontar o problema do mal. Assim como Tocqueville, Arendt também abarcou em seus textos os fenômenos da revolução e da democracia, fundamentais para o entendimento dos significados da liberdade e da cidadania, assuntos que ainda são muito caros para nós que, diante das crises e das oportunidades políticas de nosso próprio contexto, recorremos a essas obras em busca de luzes para guiar nosso juízo. Por esses motivos, o livro de Rosângela Chaves, O dia de glória chegou: revolução, opinião e liberdade em Tocqueville e Arendt (Edições 70, 2022), vem em excelente hora para nos auxiliar em tal busca, colocando lado a lado essas duas figuras exponenciais para a Filosofia Política.
O livro de Chaves é resultado de seus anos de estudo no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás. O que ela se dedicou a realizar é muito instigante e de grande fôlego, ao defender a interpretação de que é possível encontrar, nas obras de Tocqueville e de Arendt, “uma versão convergente de republicanismo, no seu esforço de recuperar os ideias republicanos de espírito público e de participação na vida pública como remédios republicanos para combater as ameaças de despotismo surgidas na modernidade” . Para explorar o caminho necessário à fundamentação dessa tese, foi mobilizado um conjunto de temas centrais presentes nas obras dos dois autores, especialmente os de liberdade, igualdade, opinião/opinião pública, revolução e democracia, os quais foram analisados com exemplar cuidado nas fontes que serviram de base à pesquisa, sem deixar de recorrer a uma ampla bibliografia secundária para auxiliar e enriquecer a discussão. Vale destacar, igualmente, o mérito de não ter se furtado a problematizar as ideias de Tocqueville e de Arendt nos vários pontos que se mostraram passíveis de crítica aos olhos da pesquisadora (a questão da escravidão dos negros e do extermínio dos indígenas na América, a polêmica distinção entre o social/econômico e o político em Arendt, as interpretações do pensamento de Rousseau mediadas pelos revolucionários franceses, por exemplo), o que demonstra a maturidade esperada em um trabalho sério de doutorado.
Aliada a essas virtudes na pesquisa filosófica, a qualidade na redação no livro também é um ponto forte a ser salientado. Chaves nos oferece um texto muito bem escrito e estruturado, agradável de ser percorrido e sempre bastante claro em suas exposições, coerente e coeso na construção do fio condutor de cada capítulo e do conjunto da obra, característica que não se perde ao longo de sua extensão robusta. Tal amplitude se justifica, em primeiro lugar, porque, para além da discussão filosófica das ideias de Tocqueville e de Arendt, em um sentido mais estrito, Chaves também realizou frequentes incursões no campo da história intelectual, incluindo elementos biográficos e informações históricas sobre os períodos relacionados aos contextos abrangidos pelos autores em suas obras – mormente as Revoluções Americana e Francesa, e o quadro da democracia nos Estados Unidos no século XIX – ou às épocas em que eles viveram. Isto trouxe importantes elementos para ajudar na compreensão dos tópicos estudados, sem cair nos erros interpretativos de reduzir os textos ao contexto ou de apresentar explicações psicologizantes para as teses dos dois pensadores. Ademais, é um método coerente com o tipo de trabalho que tanto Tocqueville quanto Arendt empreenderam para lidar com seus objetos de estudo, um método muito voltado às práticas e às instituições políticas concretas adotadas em diferentes épocas e lugares, algo que permitiria colocar ambos no rol dos escritores políticos mais do que entre os filósofos, como a própria Arendt preferia.
O segundo motivo que justifica a amplitude do livro é a ousadia, no melhor sentido do termo, de abarcar a discussão aprofundada das ideias de não apenas um, mas de dois pensadores tão prolíficos quanto Tocqueville e Arendt. Apesar das dificuldades inerentes a trabalhos comparativos desse gênero, o modo pelo qual Chaves levou a cabo sua pesquisa, tomando como referência as afinidades temáticas presentes nas obras para organizar a construção dos capítulos, foi muito bem conduzido ao entrelaçá-las mediante cotejos detalhados capazes de ressaltar as proximidades entre as ideias abordadas – as convergências republicanas, em especial –, mas também as diferenças relevantes. Assim, ela nos oferece a interpretação de Tocqueville como um pensador republicano, mas sem fazer disso a atribuição simplificadora de somente mais um dentre outros rótulos já colados ao nome do autor, tal como o de liberal ou o de aristocrata. A pesquisadora fundamenta cuidadosamente sua leitura amarrando o entendimento da liberdade política ligada à atuação no espaço público, as reflexões sobre a igualdade democrática, a denúncia dos riscos inerentes à tirania da maioria e do Estado tutelar, o realce das instituições e práticas fomentadores da virtude cívica e do engajamento nos assuntos de interesse público.
Igualmente, no tocante a Arendt, seja pelo recurso a esse conjunto de problemáticas políticas em diálogo com as reflexões tocquevillianas, seja abarcando outras questões que emergem mais especificamente nos textos da autora – a ação política como criadora de novos começos, ou a dignidade da doxa na manifestação de opiniões e na busca por visibilidade na esfera pública, por exemplo –, Chaves alicerça sua interpretação da pensadora alemã como republicana. Entretanto, não omite as observações e ressalvas necessárias para levar em conta as peculiaridades do republicanismo de Arendt, evitando enquadrá-la rigidamente a essa ou a qualquer outra corrente política.
Enfim, a opção de abarcar Tocqueville e Arendt em uma mesma tese exigiu um empenho considerável para atingir seus vários objetivos interligados, e Chaves foi muito exitosa no caminho trilhado. Certamente, o livro que agora chega ao público tem todo o potencial para se tornar uma referência importante aos estudiosos de ambos os autores, principalmente aos que se interessam pelos diálogos travados por Arendt com o legado do escritor francês. Todavia, como afirmado no início, não se trata de um livro apenas para especialistas em Filosofia, pois suas páginas estão repletas de um rico arsenal intelectual para aqueles que desejam, como cidadãos republicanos, fortalecer a democracia contra a letargia individualista do consumismo ou os arroubos autoritários e antipolíticos que, de dentro dela mesma, sempre podem emergir para ameaçá-la, como Tocqueville e Arendt nos alertam.
Livro: O dia de glória chegou – revolução, opinião e liberdade em Tocqueville e Arendt
Autora: Rosângela Chaves
Editora: Edições 70
Páginas: 547