Caro Telêmaco,
encerrou-se a Guerra de Troia.
Quem venceu, não lembro. Gregos,
sem dúvida: só gregos deixariam
tantos defuntos longe de seu lar.
joseph brodsky
No ano em que nasci, a guerra do Vietnã já tinha acabado, mas suas consequências sobrepunham-se em ondas de reorganização da vida e de movimentações políticas e sociais. Em 1977, a ditadura no Brasil blindava a classe média com vontade de anos dourados com futebol e Roberto Carlos. Em 1977, uma de nossas melhores poetas, Lourdes Teodoro, criticava em versos o modo como a linguagem do fim foi instrumentalizada como utopia para nos manter à espera-estáticos na última forma de progresso humano: a guerra bacteriológica que faz cair os pobres e consagra o branco como sinônimo de limpo, verdadeiro, bom e belo (leiam Água Marinha!).
Ainda em 1977 aconteciam a guerra do Saara Ocidental, a guerra entre Líbia e Egito, a guerra de Ogaden e o Terror Vermelho na Etiópia. Não presenciei nada disso, mas crescer neste planeta, desse jeito, deixa a gente assim meio Georg Trakl (1887-1914) – vendo pastores enterrarem o sol na floresta nua e pescadores puxando a lua de algum lago gelado. Signos de destruição ou de inversão, metáforas que fazem os olhos enxergarem o absurdo, essa é a linguagem do apocalipse, não da utopia. Ou, antes, seria o apocalipse a linguagem das guerras.
Quero contar de como a linguagem violenta do fim do mundo vinculou meu corpo à vida pelo medo e, depois, pela vontade de escrever. Uma de minhas lembranças mais genuínas, aquelas de que a gente tem certeza de que não foi inventada pela narrativa de uma foto, é de um recreio vivido no amplo pátio do colégio Santo Agostinho, ali perto do Mutirama. Foi um recreio de pouca diversão e muito terror simbólico. Tinha acabado de sair da aula de religião e a professora Ana Clara se me apresentava como meu primeiro anjo apocalíptico. Foi assim que uma mulher branca e cristã me disse que o mundo iria acabar – ela só não me disse quantas vezes já tinha acabado e por quanto tempo continuaria assim.
Acabar como?, perguntamos. E lá veio o livro de João de Patmos: “Quando ele abriu o segundo selo, ouvi o segundo ser vivente dizer: Vem! E saiu outro cavalo, um cavalo vermelho; e ao que estava montado nele foi dado que tirasse a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros; e foi-lhe dada uma grande espada” (Apocalipse, cap. 6, 3-4).
Depois de ler para a turma descrições de como sobreviria um grande terremoto e a lua ganharia a cor do vermelho-sangue e as estrelas cairiam do céu como figos verdes e o céu se desenrolaria do alto como um papiro tirando montes e ilhas dos seus lugares, enfatizou (não sem algum prazer) como apenas alguns alcançariam a redenção, não todos, e assim fomos liberados para a hora do lanche nada feliz naquele dia.
Levei minha lancheira vermelha para perto da pobre estátua branca da virgem maria situada no meio do pátio e, desprotegida dela, longe dos colegas, e sem pensar em comer, gastei o tempo todo do intervalo pensando: quem diabos seriam esses eleitos, como isso vai acabar em água de novo, seria repetitivo, pouco criativo, posto que já tivemos o dilúvio; se acabar em fogo, dá tempo de correr e desviar dos primeiros focos e chegar em casa; mas tenho que combinar tudo com meus pais e meus irmãos; quando o mundo acabar quero estar com meus pais e meus irmãos.
Devaneios de menina branca privilegiada que pode acompanhar tudo de longe, vendo TV, com a lancheira no colo, sem conseguir escrever versos como uma Cecília, também inspirada pela linguagem do fim diante da 2ª Guerra:
E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
– tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.
De qualquer forma, em um aspecto, João de Patmos estava certo, pois que fim do mundo é mesmo coisa de entregar espadas nas mãos de “grandes homens”. Brecht:
No momento de marchar, muitos não sabem
Que seu inimigo marcha à sua frente.
A voz que comanda
É a voz de seu inimigo.
Aquele que fala do inimigo
É ele mesmo o inimigo
Vieram então as guerras no Golfo, na Bósnia, os genocídios em Ruanda, no Congo. As torres gêmeas foram derrubadas. E os EUA começaram uma verdadeira caçada a corpos não brancos. Síria, Líbia, México. A guerra contra as mulheres em San Juarez. Vivemos quase 30 dias acompanhando o conflito entre Rússia e Ucrânia, enquanto no Iêmen há 11 anos morrem 233 mil pessoas e na Etiópia um conflito entre o governo central e um partido político deixa milhares de pessoas em situação de miséria e doença. A cada novo conflito, eu penso: agora acaba. A lógica do mundo é a lógica do fim. Não de todo O mundo. Há os eleitos, os financiadores do fim, os combatentes do fim, os mortos, as violadas e os expropriados, os sobreviventes, os refugiados e os poetas da guerra.
Numa avaliação geral, o apocalipse bíblico é até bonito, vou dizer também “poético” – fundindo ética e estética, esse gênero literário antecipou na antiguidade judaico-cristã as combinações aparentemente alucinadas de imagens do surrealismo. Na tradição judaica, bem como no cristianismo, os apocalipses respondiam a circunstâncias político-sociais opressoras como a campanha antissemita de Antíoco IV Epífanes justificou as visões destruidoras do livro de Daniel; e foi exilado em Patmos para fugir da perseguição romana que João escreveu o último livro do Novo Testamento. Esses escritores tentaram, cada um a sua maneira, restabelecer a comunicação com seus deuses, invocando-os a transformar imediatamente suas histórias mundanas de injustiça, medo e dor.
Não surpreende, portanto, que muitos artistas e poetas encontraram imagens insuspeitas nos textos escritos sob a ameaça de uma guerra ou de um golpe. Murilo Mendes é um dos meus preferidos nesse sentido. A 1ª Guerra foi cruel em estratégias químicas e tecnológicas que potencializaram o sofrimento e a aniquilação. Com imagens catastróficas surreais, ele conseguiu anular os princípios da lógica e conciliou as contradições do ego e da realidade. Consagrou o sujeito lírico como um visionário imerso nos símbolos da ordem e da desordem. Os primeiros livros da obra muriliana anteciparam aquele novo céu e aquela nova terra prometidos no capítulo 21 do livro de João. Mas a 2ª Guerra veio mesmo abalar suas certezas poéticas. Sua visada apocalíptica, até então fonte de revelações – e revelação é até hoje a melhor tradução para a palavra grega “apocalipse” –, a poesia de Murilo se fechou para a transcendência.
O enorme monumento de ódio atinge as nuvens.
O mundo envenenado
Sitia meu corpo exausto
Sem que até agora se distinga
O eco das trombetas vingadoras.
O Criador nos abandona à nossa própria sorte,
Recusando as hóstias profanadas.
E ninguém precisa ser poeta para compreender dolorosamente que uma guerra, qualquer guerra, coloca em xeque nossa capacidade de acreditar na humanidade e, ao mesmo tempo, em qualquer força suprassensível que nos garanta justiça. Foi a poesia escrita por autores e autoras indígenas que me ensinou que para algumas pessoas, muitas pessoas, na verdade, a GRANDE guerra nunca acaba. Por isso, precisamos aprender a cantar com Zélia Balbina (Ponan Puri):
Estou na vida
Estou na guerra
Vivendo indignação
Fecho o punho
E vou a luta
O corpo indignado vai à luta, não por ordem do chefe da nação, vai porque precisa impedir mais apocalipse sem qualquer revelação. Antes que tudo se acabe de vez, no meio de um pátio cristão, em uma lancheira intocada que separa o corpo da realidade cruel de todas as guerras. Por isso hoje escrevo, por sentir a mesma dívida que Françoise Vergès: em dívida com todas as autoras e todos os autores, artistas e militantes que investigaram e poetizaram as opressões de classe, raça, gênero e sexualidade; as opressões coloniais, imperialistas, capitalistas que nos arrastam para o fim do mundo todos os dias.
Parabéns Tarsilla Couto reflexão maravilhosa, a vida é uma guerra sem fim para as minorias deste mundo… O Heráclito de Éfeso dizia que ” A guerra (ou a luta) é o pai de todas as coisas, de uns fazem deuses e outros escravos”. Só não disse que os deuses ou eleitos da guerra são apenas os promotores que não lutam e nunca morrem nessa luta. Como sempre gostei muito do seu texto.
As guerras que vivemos, no meio da trincheira te encontro e digo venha comigo se quiser viver. A confiança é tudo, melhor a ação que o desespero. E você veio, ou devaneio meu.