Mestre em Filosofia pela UFG e professor de filosofia da rede pública estadual do Pará, João Aparecido Gonçalves Pereira lançou no ano passado o livro Política e Conflitos: o que Maquiavel nos Ensina? (Appris Editora). Resultado da sua pesquisa de mestrado, o livro faz uma ampla abordagem do pensamento de Maquiavel (1469-1527), autor de clássicos da teoria política como O Príncipe e Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, tendo como ponto de partida o papel dos conflitos como algo inerente à política, “o fundamento dos corpos políticos”, como escreve o professor Carlo Pancera (UFMG) na apresentação da obra. Na entrevista a seguir concedida por e-mail a Ermira Cultura, João Aparecido – que também está à frente do canal Central Filosófica (https://www.youtube.com/c/Centralfilos%C3%B3ficaJA33) no Youtube, no qual promove lives semanais sobre temas da filosofia – discorre sobre a originalidade do pensamento maquiaveliano na tradição da filosofia política, o realismo político de Maquiavel, a questão controversa entre ética e política na sua obra, entre outros tópicos. Confira:
Na introdução do seu livro, você cita autores, como Claude Lefort, que apontam a absoluta originalidade da obra de Maquiavel e outros, como Skinner, que o inserem na tradição do pensamento de Aristóteles e Cícero. Na sua opinião, Maquiavel representou uma ruptura com a tradição ou uma continuidade?
Maquiavel, em alguma medida, anda na esteira de alguns pensadores clássicos da filosofia política que são anteriores a ele. Dessa forma, existem em seu pensamento vários elementos de continuidade com a tradição do pensamento de Aristóteles, de Tucídides, de Cícero e também de alguns pensadores do humanismo cívico. Eu menciono alguns destes elementos no primeiro capítulo do meu livro. Por outro lado, também mostro neste mesmo livro que o Secretário Florentino rompeu com alguns padrões de pensamento político da tradição clássica, e também com relação aos seus contemporâneos, sobretudo no que concerne ao papel dos conflitos na vida política. Considero que o modo de abordar os conflitos politicos é que revela a originalidade de Maquiavel dentro da filosofia política e da ciência política.
Para Maquiavel, o conflito é positivo, é essencial na vida política. Em que medida essa análise contribui para uma melhor compreensão da política?
Para Maquiavel, os conflitos são estruturantes de toda a vida política. Com isso, o nosso autor não defende que os conflitos sejam , em si mesmos, algo bom ou ruim. Mas que eles são inevitáveis e é deles que decorrem tanto a edificação quanto a queda de uma vida política. No segundo capítulo do meu livro, eu mostro algumas condições presentes no pensamento de Maquiavel que tornam os conflitos convergentes com a construção de um corpo político republicano saudável e/ou estável. Já no terceiro capítulo, mostro algumas condições que, para o Secretário Florentino, fazem com que os conflitos sejam nocivos e destrutivos de uma república. Ou seja, como os conflitos geram a corrupção da vida política.
Maquiavel, como você escreve, pensa a política com base na sua contigencialidade, no sentido de que ela é mutável e indeterminada. É isso que consiste o realismo de Maquiavel? O que essa perspectiva traz de novo na forma de analisar a política?
O realismo político de Maquiavel também está assentado nessa contigencialidade, o que faz com que os homens não tenham à sua disposição alguma bússola fora da vida política que possa orientá-los a respeito de como se comportar politicamente da melhor forma. Sendo assim, o realismo maquiaveliano nos revela que, para saber se comportar politicamente, os homens precisam aprender a deslindar o tecido constitutivo da vida política. Neste sentido, vejo que uma das novidades que podem ser extraídas deste contexto é a ideia de que não é viável sonhar com uma vida política perfeita e duradoura da forma como é possível se pensar no campo do ideal. Nenhuma forma de governo é eterna. Todas elas estão sujeitas à decadência. Tanto a decadência quanto a grandeza de uma vida política estão ligadas às ações dos seus cidadãos. A política é uma tarefa puramente humana e de responsabilidade dos humanos.
O realismo político de Maquiavel também implica uma certa relativização dos valores morais. Como você explicaria a relação entre política e moral na obra do pensador? Há de fato uma separação radical entre ética e política na sua obra como apontam alguns intérpretes?
Eu não faço uma abordagem profunda em meu livro acerca desta questão. Todavia, eu destaco que, se é verdade que Maquiavel promoveu uma ruptura entre a política e a ética, é preciso perguntar: com qual ética ele rompeu? De acordo com Isaiah Berlin, em seu texto A Originalidade de Maquiavel, o Secretário Florentino rompeu radicalmente com a ética cristã, de modo que não é possivel, sob a ótica maquiaveliana, ser cristão e um agente político ao mesmo tempo. Todavia, para este comentador, o pensamento político de Maquiavel está em conformidade com a ética aristotélica. Eu concordo parcialmente com essa abordagem de Isaiah Berlin. Concordo que o pensamento político de Maquiavel tem muitos pontos convergentes com a ética aristótelica. Todavia, apesar de Maquiavel mostrar que a ação política não deve guiar-se por valores cristãos, com isso ele não quer dizer que a vida política e a ética cristã são totalmente incompatíveis. Ou seja, para o Secretário Florentino, apesar de a vida política e a moralidade cristã serem diferentes e não estarem relacionadas entre si, uma não implica necessariamente a obstrução da outra e ora convergem, ora divergem. Nas situações em que os valores éticos e os valores políticos se conflitam, para o bem do próprio corpo político, devem prevalecer os valores políticos.
Maquiavel não foi apenas um defensor dos governantes, das razões de Estado a qualquer preço, na visão supérflua da sua obra que prevaleceu no senso comum, mas também coloca o povo como um ator importante no seu pensamento, defendendo o seu direito de não ser oprimido. Como você define esse Maquiavel republicano, preocupado com o bem comum?
O Maquiavel republicano é um amante da liberdade, da participação do povo na vida política, um grande defensor de uma pátria amada e defendida por seus cidadãos. É um pensador que defende a necessidade da virtù e dos bons costumes do ponto de vista político, para que uma república seja relativamente saudável e estável. Neste contexto, o povo tem um papel politico fundamental para desejar e defender a liberdade e, por conseguinte, fazer com que existam boas leis e que estas sejam devidamente respeitadas. Sem o desejo de liberdade da parte do povo, não é possível ter república.
“Sem o desejo de liberdade da parte do povo, não é possível ter república”
Dois conceitos importantes na obra de Maquiavel são o de fortuna e o de virtù. Você poderia defini-los?
Em linhas gerais, para Maquiavel, fortuna tem a ver com um conjunto de forças, circunstâncias, acontecimentos previsíveis ou não, que afetam positiva ou negativamente a vida humana e/ou uma vida política. Virtù tem a ver com ações excepcionais e/ou extraordinárias que geram grandes resultados dentro da vida política. Ele usa o termo virtù para diferenciar do termo virtude, que possui uma certa carga moral.
O tema da liberdade também é muito importante na obra de Maquiavel. Como você definiria a ideia de liberdade no pensamento do autor?
Creio ser interessante, para pensarmos esta questão em Maquiavel, acorrermos a duas categorias de pensamento de Isaiah Berlin, que são: liberdade negativa ( ausência de coação, prerrogativa individual para fazer ou não alguma coisa) e liberdade positiva (que tem a ver com a participação e o engajamento na vida política). É o poder de participar, deliberar e se envolver na vida política. Estes dois sentidos de liberdade estão presentes nos escritos maquiavelianos. Todavia, sendo ele um pensador republicano e renascentista, a liberdade positiva tem mais ênfase em suas abordagens. A meu ver, Maquiavel nos revela que a liberdade positiva é condição para gozar da liberdade negativa. Ou seja, sem a participação e o engajamento na vida política, não existem os elementos que garantem o gozo da liberdade negativa ou dos direitos individuais.
“Sem a participação e o engajamento na vida política, não existem os elementos que garantem o gozo da liberdade negativa ou dos direitos individuais”
Que contribuições o pensamento de Maquiavel traz para pensar a democracia brasileira?
Conforme eu apresento no capítulo IV do meu livro, Maquiavel não pode ser considerado um democrata radical por diversas razões. Todavia, existem elementos democráticos presentes em seu pensamento político. Ora, se a democracia é o regime político que comporta a pluralidade e a diversidade no campo do pensamento, das vivências e dos interesses e também é o regime da participação do povo na vida política, Maquiavel nos deixou um grande legado teórico que serve para fundamentar esses atributos da democracia. Como já falei anteriormente, para o Secretário Florentino, a política se estrutura a partir dos conflitos decorrentes do fato de as pessoas não desejarem a mesma coisa no âmbito da política. De igual modo, também falei anteriormente que um regime de liberdade se edifica e se mantém a partir da participação e do engajamento do povo na vida política, visando ao bem comum. Ou seja, não basta o envolvimento na política. É preciso que este seja movido pelo amor à coisa pública, por aquilo que torna a vida junto aos outros cada vez mais saudável, equânime e estável. Em outras palavras, amar a coisa pública ou o bem comum significa defender e valorizar os elementos que garantem a convivência político-social de todos de forma relativamente segura e organizada, como são, por exemplo: as boas leis, as instituições eficientes e os bons costumes compreendidos a partir de um ponto de vista republicano. Desta forma, Maquiavel nos faz entender que uma democracia saudável e estável não depende apenas de quem a governa, mas também de como ela é governada. Se tem ou não a participação efetiva do povo na vida política.
Livro: Política e Conflitos: O que Maquiavel nos Ensina?
Autor: João Aparecido Gonçalves Pereira
Editora: Appris
Páginas: 226