Em uma entrevista recente concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, a psicanalista e ensaísta francesa Elisabeth Roudinesco, ao ser questionada sobre a obra do escritor Michel Houellebecq, afirmou que o autor faz parte de uma corrente literária muito particular existente na França, denominada de “literatura de abjeção”. Essa vertente, conforme ela, “tem um olhar sobre o mundo em que tudo é abjeto, os personagens cultivam a abjeção e um horror de tudo. É uma literatura que se origina da extrema-direita”. A ensaísta, no entanto, admite que os primeiros livros de Houellebecq eram interessantes, pela crítica impiedosa que faziam à sociedade de consumo e aos valores da classe média. Mas, a partir do polêmico Submissão, nota-se, segundo Roudinesco, um visível empobrecimento literário da parte de Houellebecq, uma redução da literatura a engajamentos ideológicos. “Ele se tornou um ideólogo da extrema-direita, que está perdendo seu talento”, lamenta.
Celebrado pela mídia francesa como o eterno “enfant terrible” da literatura nacional, Houellebecq nunca foi uma unanimidade em seu próprio país. De um lado, há os que veem nele um autor magistral e inovador, além de um visionário cujos romances revelam-se assustadoramente proféticos – como é o caso de Submissão, que descreve uma França islamizada, e que chegou às livrarias coincidentemente no dia do atentado ao Charlie Hebdo, no dia 7 de janeiro de 2015; Sérotonine (2019), no qual muitos viram uma antecipação da França palco dos protestos dos gilets jaunes; ou mesmo o último, Anéantir (2022), que pinta um cenário em que a decadência europeia se soma à ascensão do populismo de extrema-direita. Por outro lado, há os que o acusam de ser um reacionário empedernido e um misógino incorrigível. O escritor, por sua vez, procura escapar a essas classificações alegando que o que o mobiliza é apenas a criação literária, embora vez ou outra faça declarações à imprensa que só dão munição aos seus detratores, a exemplo de quando disse que Donald Trump “foi um dos melhores presidentes americanos” ou externou sua admiração pela verve polemista de Éric Zemmour, o ultradireirista derrotado no primeiro turno das eleições presidenciais da França neste domingo, dia 10, ou ainda quando classificou o Islã “como a mais estúpida das religiões”.
No entanto, sem querer reduzir a obra à persona do autor, tendo em vista as suas controversas declarações públicas, é difícil não concordar, pelo menos em parte, com a síntese que Roudinesco faz da trajetória de Houellebecq. De fato, como ela salienta, desde o seu primeiro romance de maior impacto, Partículas Elementares (1998), o escritor surgiu como uma promessa de renovação no morno cenário atual da literatura francesa, evocando os medos mais profundos, as angústias maldisfarçadas, o vazio existencial de homens e mulheres no mundo ocidental contemporâneo.
Dessa primeira safra, Plataforma (2001), que saiu no mesmo ano do ataque às Torres Gêmeas, é, sem dúvida, o mais instigante e provocador. A história de Michel, cuja trajetória de sucesso como investidor de clubes de turismo sexual no Terceiro Mundo termina tragicamente com um atentado terrorista, apresenta uma vigorosa crítica às ilusões neoliberais do mundo globalizado, com sua promessa de transformar o planeta em um playground para os endinheirados. A Possibilidade de uma Ilha (2006), embora menos inspirado, também é uma crônica impiedosa sobre os nossos tempos, com sua obsessão pela eterna juventude. Mesmo o superestimado O Mapa e o Território (2010) – vencedor do Prêmio Goncourt – oferece uma reflexão interessante sobre o oficio do artista em nossa época diante da massificação imposta pelo mercado.
Mas Submissão, como bem apontou Roudinesco, representa um ponto de inflexão negativo nesta trajetória consagrada pelo Goncourt. Não só porque, em termos estilísticos, o livro é visivelmente inferior aos outros, com seus personagens rasos e sua trama mal-ajambrada; o seu conteúdo se apresenta como abertamente xenófobo, em uma abordagem simplista e estereotipada da cultura islâmica; e as concessões que Houellebecq faz à extrema-direita francesa – colocando em cena uma Marine Le Pen moderada e republicana, em oposição ao radicalismo de uma imaginária Fraternidade Mulçumana que toma o poder na França, com apoio da esquerda – sejam difíceis de digerir. O que incomoda, sobretudo, e oferece razões para ver no autor, através da sua obra, proximidades com o que há de mais reacionário no cenário político atual, é o papel que ele concede às mulheres.
A bem da verdade, em relação às suas obras anteriores, Submissão aprofunda e potencializa aquilo que sempre foi um aspecto problemático nos romances de Houellebecq. Na prosa do autor, as personagens femininas geralmente figuram em segundo plano, como objetos da volúpia ou de repúdio dos protagonistas masculinos. Elas não são representadas como seres humanos autônomos, com suas próprias inquietações e desejos, mas como extensões dos corpos masculinos, um objeto a ser consumido e descartado. Isso é visível na forma como o envelhecimento feminino é descrito, sempre de forma impiedosa, mesmo com repulsa – é como se, passada a fase da juventude e do esplendor da beleza, qualquer possibilidade de prazer sexual fosse interditada às mulheres. Elas fenecem, perdem o brilho e até o apetite pela vida – como é o caso de Isabelle, a mulher do humorista Daniel em A Possibilidade de uma Ilha (“Ganhara pelo menos vinte quilos. Até mesmo o rosto, dessa vez, não fora poupado: apagada, arroxeada, degradada, cabelos oleosos e desgrenhados, estava pavorosa”, diz o protagonista a respeito dela) e da modelo russa Olga, namorada do artista plástico Jed Martin de O Mapa e o Território (“Essa magnífica flor de carne tinha começado a fenecer; e a degradação, agora, ia se acelerar”, descreve o narrador do romance).
Em Submissão, Houellebecq radicaliza esse modo depreciativo de retratar as mulheres. “[…] seu corpo sofrera estragos irreparáveis, sua bunda e seus seios não eram mais que superfície de carnes magras, reduzidas, moles e caídas, ela já não podia, nunca mais poderia ser considerada um objeto de desejo”, afirma o protagonista do romance, o professor François, sobre uma ex-namorada, Aurélie. Nessa distopia política em que o autor descreve uma França dominada pelo Islã, as mulheres se submetem sem questionar e sem se revoltar às novas regras, abandonando como cordeirinhas os seus empregos e sua vida independente para se recolherem ao ambiente doméstico e servir aos homens – e o fazem, como dá a entender a personagem Marie-Françoise, uma colega de universidade de François, como se no fundo ansiassem por esse retorno a uma vida inteiramente privada, deixando o domínio público como espaço exclusivamente masculino. Já para o protagonista, François, a nova ordem na França também lhe permite realizar os desejos mais inconfessos, possibilitando-lhe concretizar as fantasias eróticas alimentadas pelo imaginário europeu sobre o Oriente, com suas figuras femininas dóceis, submissas e sensuais.
Os defensores de Houellebecq afirmam que seus romances, na verdade, têm o poder didático de expor a mentalidade patriarcal, branca e masculina do Ocidente, cujo domínio se vê ameaçado pela emancipação feminina e pela luta por mais justiça e igualdade social por parte das minorias étnicas e raciais. Com efeito, esses homens brancos que aparecem como protagonistas dos seus livros são sempre personagens frágeis, amargas, inseguras, solitárias e infelizes. Nesse sentido, ecoam a visão pessimista do autor sobre a condição humana. Mas a forma redutora, caricatural até, em que a mulher surge nos seus livros, desprovida de qualquer dignidade, não pode ser vista como um aspecto secundário, que pode ser relevado, da ficção houellebecquiana. O ódio à mulher está profundamente enraizado nas ideologias de extrema-direita. Sob essa perspectiva, o ideário ultradireitista e a literatura de Houellebecq apresentam uma lamentável afinidade.