Às vezes, tantos anos depois, sem nenhum estímulo, surge na minha memória, como desprendida de um álbum antigo, a imagem daquele senhor idoso, apoiado numa bengala, cujos entalhes eram tão elegantes quanto dissertativos.
Ele está em pé, veste um agasalho de lã e balança o seu corpo para frente e para trás, bem lentamente, os olhos semifechados; é alto e calça sapatos enormes. Tem compleição robusta e, por causa do rosto fechado e duro, parece nunca sorrir.
Uma personagem para um roteiro.
Foi por acaso que eu o vi, numa das manhãs em que passava pela rua de l’Estrapade, no 5º Arrondissement, quando me dirigia a um dos seminários que frequentava. Eu o notei assim de repente, num flash, entre o muro baixo e a fachada do sobrado.
Nas inúmeras vezes em que passei por aquele local, encontrava-o sempre lá, no seu pequeno jardim, como se fosse uma estátua semovente, lembrando-me, pelo seu ritmo e pelo seu semblante, que um homem em pé pode significar muitas coisas, inclusive a de ficar em pé.
Nessas ocasiões, ocorria-me que, naquelas redondezas, durante a ocupação alemã, foram travadas batalhas difíceis, como aquelas reconstituídas pelo cinema, que descrevem fuzilamentos sumários em bulevares, atentados em cafés e tiroteios pelo bairro.
Como ele me sugeria tantas coisas sobre esse período, sentenciei num dia cinza, aquele que Verlaine descreveu, pensando na flor que sonha com a primavera:
“C’est vieux monsieur é um sobrevivente das atrocidades nazistas.”
E passei, a partir desse momento, a sentir admiração por esse homem, por ele ser um sobrevivente, por estar ali em pé balançando o corpo e por lembrar a todos os passantes que a vida que ele viveu não foi uma festa de andorinhas em torres de igrejas. Certamente, ele perdeu os melhores anos de sua vida, com perdão do lugar-comum, se é que os perdeu mesmo.
Gostava de imaginá-lo no front, no instante em que a sua metralhadora derrubava os inimigos, que caíam como patinhos no estande de tiro ao alvo. E, em outra situação, eu o via como um exímio atirador postado no telhado, o seu rifle silenciando para sempre, um por um, os cochons que oprimiam os seus concidadãos.
Mais que isso, nos meus devaneios, eu gostava de pensar que ele tinha atuado nos subterrâneos dos maquis e participado de várias ações de sabotagem e que tinha lutado bravamente dia e noite para libertar a sua pátria dos nazis e que, afinal, não tinha sido uma única vez ferido por causa de sua devoção a Joana d’Arc.
Dependendo do meu humor, cada vez que passava por ali, eu imaginava para aquele homem complexo diversas peripécias, todas, é bom dizer, das quais participava com denodo e destemor – esse ex-combatente enfeitado de condecorações no 14 Juillet.
Todas as vezes que eu passava em frente à sua residência, lá estava ele, balançando o corpo erecto, apoiado em sua bengala estilosa, como se lembrasse solitariamente de sua vida feita de combates, sacrifícios e glórias.
Até que, numa bela manhã, quando Paris resplandece no outono, tive coragem e saudei-o, como se lhe prestasse uma homenagem tardia, mas reverencial:
“Bonjour, Monsieur!”
Ele abriu os olhos e respondeu à saudação, um timbre de barítono que se esvaía; o rosto, porém, se não demonstrava surpresa, era digno e marmóreo – quase augusto. Depois, fechou os olhos – e voltou à dança do corpo.
Após esse dia, assim como a memória e a imaginação não explicam os sentimentos, eu passei a ter a secreta convicção, por mais especulativa que fosse, de que tinha conhecido pela primeira vez, sem mais nem menos, ao acaso, um herói da Segunda Guerra – e isso, para um cinéfilo, é quase tudo.
fabuleux. Un privilège d’avoir accès à ce magazine.
Diletos amigos:
Hoje, estava ouvindo a Juliette Gréco – Sous le ciel de Paris ( música de 1951 ) e pensei tanto no texto acima. Eu, francófono, que tantas vezes fui a Paris, pré-pandemia, me transportei com o narrador deste conto e sou grato a você, Luis Araújo Pereira e à Ermira pela emoção sentida. Forte abraço do
Beto