[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Lagartixa
Do grande sol amiga e pequenina,
– alma de arqueólogo – num velho muro,
ao ver que me aproximo, a um canto escuro
corre, de onde, surpresa, me examina.
O mistério do seu viver obscuro
sondo, atento. A cabeça viperina,
num gesto indagador, ei-la que empina,
procurando – quem sabe? – o que procuro.
O seu olhar ao meu como que fala…
Não lhe compreendo a irracional cabala;
mas qualquer coisa ao espírito cochicha
que o pequeno réptil é um visionário,
e, presa de pavor extraordinário,
supõe-me o gênio mau da lagartixa…
Ontem (1928)
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[2]
Corações enfermos
Como o pai que conduz um filho doente,
levei para outro clima o coração.
Agoniava-o a febre, o mal ardente
de todo sonhador de uma ilusão.
Chegamos, como estranhos, entre a gente
do país; e, seguindo a multidão,
o pobre enfermo, já convalescente,
sentia-se tranquilo, quase são.
Mas, um dia, por mal dos meus pecados,
os nossos corações foram vizinhos
e deram de bater mais apressados.
Foi-me fatal aquele encontro, pois,
nesta senda de flores e de espinhos,
em vez de um doente, levo agora dois.
Ontem (1928)
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[3]
Minha sombra
Esta sombra, que arrasto pela vida,
como um grilhão na marcha sob a luz,
há de seguir-me sempre, aos pés unida,
carregando comigo a minha cruz.
Ei-la a imitar-me os gestos, constrangida
pelo destino atroz, que nos conduz;
e, assim, vamos vivendo nesta lida
até que venha a morte – catrapuz!
E ao báratro de sombras do jazigo,
tu, minha sombra, descerás comigo,
para o descanso que também é teu.
Humilde companheira de jornada
– imagem desta vida malograda,
tu, minha sombra, foste apenas eu.
Ontem (1928)
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[4]
Almira
A tarde expira.
Por entre os ramos,
a voz suspira
dos gaturamos.
Depressa, Almira!
Vem já, partamos!
De amor delira
minh’alma. Vamos!
É quase noite.
Do vento o açoite
fere o copal.
Amo-te à bessa
e tenho pressa…
etc e tal.
Romagem sentimental (1997)
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[5]
Sonho feliz
Desperto. Ela sonha
e abraça a almofada.
Tranquila e risonha,
no sonho enlevada.
Um beijo na fronha
depõe apressada.
Depois, de vergonha,
se torna corada.
Sonhando com quem ?
eu penso, aterrado…
Meu nome, porém,
– Oh ! sonho feliz ! –
de um beijo cortado
baixinho ela diz…
Romagem sentimental (1997)
Perfil
Léo Lynce, pseudônimo de Cyllenêo Marques de Araújo Valle, nasceu em Piracanjuba-GO no dia 29 de junho de 1884 e morreu em 7 de julho de 1954 na cidade de Goiânia. Além de poeta, foi comerciante, jornalista, deputado estadual, advogado, juiz e professor da antiga Faculdade de Direito de Goiás. Em 1928, publicou Ontem, livro de poemas, considerado pela historiografia literária como o marco inaugural do Modernismo em Goiás. Em longo ensaio crítico, a professora Darcy França Denófrio aborda vários aspectos dessa obra, destacando que “Cabendo-lhe viver um momento de violenta transição, a poética de Léo Lynce se constrói num permanente conflito entre dois discursos: o tradicional e o moderno. Isto é, entre o amálgama de um discurso que é romântico-parnasiano-simbolista estigmatizado, de que no momento precisa se desfazer, e outro já acentuadamente moderno, que conscientemente procura incorporar.” Em outra parte de seu ensaio, observa que “Podemos surpreender, na obra de Léo Lynce, praticamente todas as figurações que assumiu o poeta no curso da história: possesso, gênio, artífice, livre cantor de seu canto. Não faltou nem mesmo a antevisão de nosso momento histórico em que se tenta conciliar ao máximo a razão e a emoção”, acrescentando ainda, como contraste, que “convive em sua obra a linguagem erudita que se contrapõe à popular”. Escreveu ainda Romagem sentimental, que deixou inédito, mas que foi publicado em Poesia quase completa [Darcy F. Denófrio (coordenadora). Goiânia: Editora da UFG. 1997]. Os sonetos selecionados para a coluna procuram ilustrar, ainda que modestamente, os contrastes de sua estética. Na sua obra sobressai a forma do soneto, e várias dessas composições ora enaltecem, ora reverenciam, às vezes de modo jocoso e irônico, cidades e pessoas.
Bela seleção Luís, e belo tributo à poeta tão sensível. Obrigada pelo presente no domingo