Em abril, no dia de S. Jorge que se seguiu à madrugada da maior chuva de meteoros advindos da direção da constelação de Lyra, o Ian Guest partiu. Ele andava dizendo que a sua máquina corporal estava vencida, sabia que o coração demandava atenção.
Mestre de tanta gente, o músico húngaro radicado no Brasil morreu do coração em sua casa em Tiradentes, Minas Gerais, onde mantinha um piano e dava aulas.
Ele tinha deixado o Rio para morar em Itaipava, depois em Mariana e finalmente em Tiradentes, “para ficar pelo menos a 500 quilômetros do Rio e São Paulo”, explicava.
Octogenário, era professor da Escola de Música Bituca em Barbacena, belo projeto gratuito para os alunos graças à Lei Rouanet, num histórico Ponto de Partida.
Veio a pandemia e Ian gravou um curso virtual em Brasília, vereda que antes desconsiderava pela falta de contato pessoal. Passou a dar aulas para turmas de duas pessoas em São João Del Rey. “Nunca mais vou fazer diferente”, dizia.
Quando criança, Jovan estudou no Conservatório Béla Bartók. Sua família, de origem judaica, emigrou para o Brasil, fugindo da nascente cortina de ferro, após os horrores da guerra. Ele se formou em música na UFRJ, trabalhou no mercado fonográfico carioca e ainda foi estudar e se formar no Berklee College of Music de Boston.
Adepto do método Kodaly de musicalização, o Ian não ensinava prisão em partituras nem incentivava ver a música pela ótica do instrumento.
Fui aluno dele nos idos do tempo em um curso breve de verão sobre Harmonia. Numa aula, elogiou a minha harmonização por ser a mais simples. Apreciava a medida justa e não adicionava uma sétima ao acorde menor sem precisão.
Eu o encontrei, muitos anos depois, num restaurante popular em Tiradentes. “Ian!”, chamei. Não lembrava-se de mim. Almoçamos juntos e ele me convidou à sua casa para ver o filme recente sobre ele. “Sim, vou com um amigo fotógrafo que está chegando”, combinei.
Eu estava gravando um documentário com o artista mineiro Thi Rohrmann, interrompido depois pelo falecimento precoce do pintor e marcheteiro, visionário mais talentoso que conheci.
Fomos lá no Ian e foi uma noite agradável em sua casa, quando o gravei tocando uma música cigana húngara, pérola que guardo para o filme do Thi, querido amigo, como Ian.
Quis o destino que eu estivesse fazendo letras para composições do aluno devoto do Ian, Victor Pupu, que conheci tocando violão na rua. E o Ian gostou de nossa valsa Minascer.
Em 2020, combinamos durante o carnaval uma projeção do filme sobre ele, que fizemos na quarta-feira de cinzas, no Teatro de Marionetes de Nado Rohrmann, irmão do Thi, também semeador de uma arte mágica.
Estive outras vezes com meu amigo em Tiradentes, sempre filósofo de música e vida.
Ano passado, Ian recebia a artista Pamella Silveira, vinda de Barbacena para pintar desenhos na fachada de sua casa. Era o mundo mediado pela arte.
“Pintura com tinta de terra natural, mais próxima da natureza, que se mistura com o jardim e que é lindo de se ver desde o acordar”, definiu a artista.
O Ian comprou, na Feira Literária de Tiradentes, um exemplar da edição em volume único dos Diários de Joaquim Nabuco, que mandou cortar e encadernar em três para ler melhor. E veio me mostrar vitorioso o resultado. “Meu gênero literário predileto”, explicou, para depois apreciar e perceber com argúcia histórica quem era o autor, que não conhecia.
Ele contava que estava ficando surdo e tinha problemas de memória recente, mas seguia firme. Adepto de uma alimentação leve e saudável, não estou certo se tinha, mas cultivava uma insustentável leveza do ser.
Nos últimos tempos escrevia crônicas que mandava por e-mail, grande feito cibernético para o homem avesso ao mundo digital e virtual.
Lançou um disco de música popular camerística, Aventura de lápis e borracha, insistindo que só concebia se gravado ao vivo, com o grupo Hemathacama.
Sua história está assim retratada na providência do belo documentário O Imperfeccionista, de Marcello Nicolato.
Lindo texto. Bastante representativo da alma do Ian. Adorei.
Esses rincões de Minas têm um jeito próprio de sintetizar pérolas essenciais!
Sinto muita saudade do Ian, amigo dos tempos da Berklee, e depois, ao longo da vida, dos cursos de Arranjo, onde também lecionei .
Figura ímpar, mais húngaro impossível., e totalmente inesquecível.
Celia Vaz
Maravilhoso texto sobre o incrível Maestro Ian Guest. Gratidão Nabuco.
Texto tão autêntico, com voz e perspectiva, que senti que conheci o Mestre Ian.. Parabéns pela história de vida dele e todo o legado que nos deixou. Vou ver o DOC Imperfeccionista. Egészségedre!